Em Colmeia, as mulheres de Kosovo tem voz

Cena do filme Colmeia. Na imagem, em um quintal ao ar livre e com árvores ao fundo, vemos as mulheres do filme preparando um alimento. Da esquerda para a direita, vemos, de pé e inclinada sobre uma panela, uma mulher branca, de cabelos castanhos longos presos em um lenço, aparentando cerca de 40 anos, vestindo uma camiseta cinza. Ao centro, em um primeiro plano, vemos uma mesa com panelas e pimentas amassadas, no processo de preparo do alimento. Atrás da mesa, vemos duas mulheres brancas de cabelos castanhos, uma sentada e outra de pé, ambas preparando o alimentando. À esquerda, vemos uma mulher branca, de cabelos castanhos longos e lisos presos em um rabo de cavalo, vestindo uma camiseta rosa, sentada preparando o alimento.
Exibido presencialmente, Colmeia integra a Competição Novos Diretores da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: LevelK)

Vitória Lopes Gomez

Se a responsabilidade de revisitar conflitos históricos e humanitários é grande e deve ser levada a sério, fazê-lo sob a perspectiva feminina em um país extremamente conservador exige ainda mais cuidado. Quando exibe as palavras ‘baseado em fatos reais‘, então. Em Colmeia, coprodução de Kosovo, Suíça, Macedônia do Norte e Albânia, exibida na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, a diretora Blerta Basholli reivindica essa responsabilidade para dar voz às mulheres do país, em coro na figura e na vida de Fahrije Hoti.

No filme, inspirado na história real de Fahrije, ela luta para sustentar sozinha o sogro e os dois filhos depois do marido ter desaparecido na Guerra de Kosovo. Ela não leva jeito para as abelhas, que já não produzem mel como antes, e se une a outras mulheres na mesma situação. Na patriarcal e conservadora vila de Krusha, em que as esposas e filhas não podem sequer dirigir, quem dirá trabalhar fora de casa, os esforços das viúvas para se manterem por conta própria não é visto com bons olhos pela comunidade local. 

Cena do filme Colmeia. Na imagem, vemos a protagonista Fahrije, uma mulher branca, aparentando cerca de 40 anos, vestindo um traje de apicultura branco e manipulando um dos instrumentos da apicultura, com as abelhas ao redor dela.
Colmeia estreou no Festival de Sundance e saiu com os troféus de Grande Prêmio do Júri, Prêmio de Realização e Prêmio do Público (Foto: LevelK)

Sob o olhar atencioso e delicado de Basholli, que também assina o roteiro do filme, Colmeia mistura o luto à esperança. Mais do que sentir a perda, Fahrije lida com a dor da incerteza, já que não conhece o paradeiro do marido e nem pode enterrá-lo. Ela é impedida de viver seu luto por completo e, ao passo em que se permite pequenos lapsos de esperança, se agarra à inevitabilidade do futuro. Não saber atormenta, mas, seu companheiro estando vivo ou não, ela tem de cuidar e prover para a família. 

Não bastasse os sufocantes conflitos pessoais e familiares da protagonista, visceralmente encarnados por Yllka Gashi, o preconceito dos moradores de Krusha se empilha no topo das muitas dificuldades das mulheres kosovar. Incentivadas e lideradas por Fahrije, as outras viúvas, primeiro, têm medo. Conquistar a própria independência financeira, nem que seja para sustentarem só a si mesmas, é liberdade demais em uma vila em que elas são desposadas cedo, são jogadas aos cuidados dos maridos ou do parente homem mais próximo, não podem trabalhar fora do ambiente doméstico e nem ousar dirigir.

Cena do filme Colmeia. Na imagem, vemos quatro mulher brancas, de idades diferentes, enfileiradas lado a lado em um espaço ao ar livre e segurando fotos enquadradas de homens desaparecidos.
Na Arte, criadores encontram espaço para revisitarem e refletirem sobre assuntos delicados (Foto: Level K)

Mesmo com os agonizantes xingamentos, violências e boicotes da vizinhança, que não aceita que mulheres sejam as provedoras da casa, Fahrije e as outras viúvas seguem em frente apesar dos altos e baixos. A persistência e a garra são admiráveis, mas também cansativas e quando ela e as companheiras revidam, seja igualmente pela violência, seja pelo sucesso do empreendimento, Colmeia nos concede um respiro aliviado. O filme, porém, não nos deixa esquecer de que o suspiro é só momentâneo. 

Para além do expositivo ou do superficial, a produção não escolhe uma questão em que mergulhar, mas se apoia no retrato geral da situação: as mulheres não são feministas e independentes porque querem e nem políticas porque escolheram, elas deixam as tradições do passado e caminham em direção ao futuro pela pura necessidade de continuarem vivas. Através dos olhares delas, a Guerra como subtexto dá lugar para que as feridas sejam aprofundadas e tornem Hive (o título em inglês) essencialmente político não só pelo conflito que retrata, mas pela ousada e necessária ascensão feminina frente ao patriarcalismo e machismo local.

Cena do filme Colmeia. A cena se passa na cozinha de uma casa e vemos, no canto esquerdo, um fogão com uma chaleira em cima e, no canto direito, uma geladeira. Ao centro, vemos uma mesa e seis mulheres de idades diferentes reunidas ao redor, todas encarando as joias colocadas ao centro com expressões preocupados.
Em seu discurso de agradecimento em Sundance, Blerta Basholli afirmou que Fahrije Hoti, em que ela se inspirou para criar Colmeia, “é a voz de muitas outras mulheres” (Foto: Level K)

O conflito terminou há anos, mas ainda não chegou ao fim: os homens capturados na Guerra de Kosovo continuam desaparecidos. A força de Fahrije Hoti e de sua mensagem também não acabou: assim como no filme, ela ainda não sabe o paradeiro do marido, mas segue firme com sua empresa de avjar, em que emprega majoritariamente mulheres kosovares. Agora no páreo ao Oscar 2022 – a produção foi a submissão oficial de Kosovo na categoria de Melhor Filme Internacional -, o potente e singular Colmeia pode espalhar sua mensagem de esperança frente ao luto e de ousadia pela sobrevivência ainda mais longe.

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