Ciranda de Pedra: Natércio amava Laura que amava Daniel

Edição de 2009 pela Companhia das Letras (Foto: Reprodução)

Isabella Siqueira

Em seu primeiro romance lançado em 1954, a dama da literatura brasileira Lygia Fagundes Telles propõe falar sobre identidade e a noção de pertencimento. Em Ciranda de Pedra, essa que foi a única mulher indicada a um Nobel de Literatura no país entrega na obra uma narrativa comovente, cheia de poesias e metáforas que acompanham mesmo depois da leitura. A trama segue a jovem Virginia na infância e começo da vida adulta, o que chama atenção é a possibilidade de se ver na menina que está sempre fora da “ciranda”.

Durante a infância a protagonista enfrenta um hostil ambiente familiar arrasado por um escândalo, e a obra assim escancara a classe média da época. No início da história a jovem Virginia lida com o drama de seus pais separados. Mora com a mãe, Laura, e seu amante, o médico Daniel. É importante ressaltar que Laura sofre de transtornos mentais sérios, e esse é um dos tabus daquela época que Lygia propõe na obra. 

A escritora Lygia Fagundes Telles é um grande nome da geração modernista, foi laureada em 2005 ao Prêmio Camões e atualmente possuí uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (Foto: Reprodução)

Além de se sentir uma penetra nesse ambiente a menina é também rejeitada na casa do pai, Natércio, e das irmãs, Bruna e Otávia. Cada relacionamento dela com as demais personagens possuí suas nuances, seu pai lhe trata com distância e frieza e sem entender o porquê Virgínia insiste em seu amor. No caso das irmãs mais velhas e de seu círculo de amigos, Leticia, Afonso e Conrado (amor de infância de Virginia), ela também não consegue adentrar essa roda sendo sempre excluída. Entendemos assim que seu maior anseio é pertencer a esses núcleos, o que ela nunca consegue. 

Com uma imaginação fértil e infantil, a personagem fantasia e deseja uma vida melhor do que que possui, e assim entramos na cabeça de Virgínia. É fácil se identificar com a protagonista e suas falhas tentativas de se envolver nesses grupos, familiares ou não, a qual ela observa de fora. A história fala então sobre essas “Cirandas”, seja a ciranda de anões de jardim ou as relações interpessoais que nos inserimos ou não. A protagonista se descobre aos poucos sempre questionando sua identidade e aonde se encaixa. 

O romance aborda temas perturbadores não apenas para a sociedade da época, como homossexualidade, adultério, suicídio e impotência sexual masculina. Não apenas com tais assuntos, Lygia também escreve sobre os dilemas morais que surgem na segunda parte da história. No início da vida adulta a jovem se vê já sem expectativas. Após um salto temporal, ela descobre as facetas e a hipocrisia dos demais personagens, todos eles têm seus defeitos e fraquezas, ninguém é bom ou mau simplesmente. 

O romance também foi adaptado duas vezes para novela na Globo, sendo as produções exibidas em 1981 e 2008. A foto corresponde a abertura da versão de 1981 (Foto: Reprodução)

Em diálogos que não exibem tanto realismo, as personagens aparentam ver o mundo por meio de belas metáforas, o que caracteriza esse primeiro romance de Lygia. A autora explora a trama pelo ponto de vista da infantil de Virgínia, o que lembra muito quase um fluxo de consciência. Visto que está sempre envolta de fantasias para fugir de sua realidade, ela acaba imaginando também conversas irreais. 

É impressionante a franqueza dos personagens e a excepcional narrativa que nos permite entrar na cabeça de uma criança. O romance psicológico Ciranda de Pedra traz os tabus que ainda rodeiam a nossa sociedade mesmo décadas após seu lançamento, e faz uma bela reflexão sobre se sentir deslocado. No final Virginia entende (e nós em algum momento também) que é preciso se afastar daquelas cirandas que nos entristecem. A escritora representante do pós-modernismo no Brasil apresenta assim um livro emocionante que escancara sentimentos de dor e tristeza, sendo muito importante dizer que Lygia Fagundes Telles enfrentou o mundo com coragem e graça. 

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