A 2ª temporada de Alice in Borderland bagunça o baralho e guarda uma carta na manga

Cena da série Alice in Borderland. Da esquerda para a direita na imagem, as personagens Ann Rizuna, Hikari Kuina, Yuzuha Usagi e Ryōhei Arisu estão escondidos em meio a uma batalha contra o Rei de Espadas. Rizoma, Kuina e Usagi são mulheres asiáticas de cabelos e olhos escuros. Arisu é um homem asiático de cabelos e olhos escuros. A câmera captura todos agachados. Ann Rizoma veste uma camiseta de botões sem mangas na cor branca e shorts e botas na cor preta. Ela segura uma pistola. Hikari Kuina veste um sutiã azul, um colar, uma calça jeans azul com cinto e tênis na cor branca. Yuzuha Usagi veste uma regata de cor vermelha com legging e tênis na cor preta. Ryōhei Arisu veste uma camiseta branca, calça jeans azul e tênis na cor branca. Ele segura uma arma. O cenário é um estabelecimento acometido pela passagem do tempo e o avanço da natureza verde.
Em poucas horas de lançamento, a 2ª temporada de Alice in Borderland alcançou o topo do Top 10 da Netflix (Foto: Netflix)

Nathalia Tetzner e Thuani Barbosa

Inspirada no mangá de mesmo nome, Alice in Borderland retorna ainda mais brutal em sua 2ª temporada. Dirigida por Shinsuke Sato, a trama persegue os protagonistas Ryōhei Arisu (Kento Yamazaki) e Yuzuha Usagi (Tao Tsuchiya) em uma Tóquio apocalíptica e repleta de jogos mortais, criados a partir dos naipes de Reis e Rainhas de um jogo de mesa. A criatividade para executar a sequência dos desafios é surpreendente, além de muito fiel à obra original, agregando valor sentimental para os fãs que acompanham a saga dessa Alice distópica. Sem medo de jogar com quem assiste, a série da Netflix bagunça o baralho e guarda uma carta na manga. 

Se em 2020, ano em que a produção do estúdio japonês Robot Communications Inc. foi lançada, o público enxergou um grupo de personagens extremamente imaturos, confusos e perdidos, ao final de 2022, o desenvolvimento proporcionado pela vivência em meio ao caos desse universo distópico se tornou perceptível. No ápice da violência física e emocional do enredo, as atuações do elenco florescem como nunca antes visto e a assinatura caricata quase inata da Televisão asiática traz uma incoerente harmonia com a composição cinematográfica de Taro Kawazu.

Cena da série Alice in Borderland. Da esquerda para a direita na imagem, o Rei de Paus parece conversar com Ryōhei Arisu. Rei de Paus é um homem asiático de cabelos e olhos escuros. Arisu é um homem asiático de cabelos e olhos escuros. O Rei de Paus está com uma das mãos em um tótem e a outra apoiada no ombro de Arisu que, por sua vez, fecha um dos punhos enquanto olha para o Rei. Ambos usam uma pulseira tecnológica na cor preta em um dos pulsos. O Rei de Paus está pelado e Arisu veste uma camiseta de botões e manga longa na cor branca. A câmera captura os dois a partir da cintura. Ao fundo, o cenário é composto por um céu limpo e containers em diferentes cores.
O Rei de Paus fez história nas redes sociais (Foto: Netflix)

Como toda sequência de produções originais, a comparação entre os diferentes formatos é inevitável, mas Alice in Borderland já está acostumada com suas adaptações do mangá para o anime e do anime para a série. Se nos quadrinhos japoneses as ilustrações adotam linhas cruas, o plano bidimensional da animação permite uma continuidade excepcional e, por fim, o live action consegue parcialmente unir tais qualidades.

Porém, tratando-se da transição de uma temporada para outra, o seriado trabalhou muito bem as mudanças, que conseguem ser perceptíveis e sofisticadas ao mesmo tempo. Em 2022, o roteiro flui com maior agilidade graças ao desenvolvimento do enredo, enquanto o tom adquire uma obscuridade que parece querer acabar com qualquer esperança de um final feliz. Os jogos mantiveram seu respeito pelos naipes, porém todos se tornaram mais psicológicos, moralistas e suscetíveis à manipulação do coração.

Pelo fato de se tratar da segunda e última temporada, a série da Netflix finalmente procura revelar a estrutura detrás desse mundo nefasto e desconhecido tanto pelos aprisionados na destruição quanto por quem assiste no conforto do sofá de casa. Uma das principais surpresas descobertas pelo protagonista Arisu é a diferenciação entre pessoas como ele, meros jogadores, e os criadores dos jogos, representantes dos naipes e classificados como cidadãos da cidade de Tóquio.

Cena da série Alice in Borderland. Da esquerda para a direita na imagem, os protagonistas Yuzuha Usagi e Ryōhei Arisu olham espantados para o Rei de Espadas enquanto tocam em um ferido pelos disparos. A câmera os captura a partir da cintura. Usagi é uma mulher asiática de cabelos e olhos escuros. Arisu é um homem asiático de cabelos e olhos escuros. Ela veste uma regata na cor amarela e uma calça na cor branca. Ele veste uma camiseta de botões de mangas longas na cor branca. Ao fundo, há um carro de tom amarelado e o cenário em volta é a cidade de Tóquio, acometida pelo avanço do tempo e da natureza.
Os atores Kento e Tao já dividiram as telas em outras produções, o que ajudou na conexão do casal (Foto: Netflix)

Responsáveis pela agonia das personagens e pela satisfação dos espectadores, os jogos brutais são, desta vez, exclusivamente elaborados pelos reis e rainhas do baralho, o que significa que as mortes nunca foram tão sangrentas, repugnantes e, ainda, constantes. Afinal, a presença do mercenário Rei de Espadas atirando a quase todo minuto chega a ser traumatizante até para quem está do outro lado da tela.

O romance entre Arisu e Usagi começa a ser desenvolvido ainda na primeira temporada, de um jeito costumeiro dos dramas asiáticos, ou seja, com muita sutileza e atenção aos pequenos detalhes, como respirações pesadas ao conversar, longos olhares e um bom jogo de câmera. Porém, é na continuação que esse affair se desenvolve, carregado de dúvidas e cumplicidade que beiram um amor adolescente, entregando momentos sensíveis mesmo em um universo tão mortal. 

O manejo dessas duas sensações é muito bem feito pela direção de Shinsuke Sato e pelo roteiro escrito junto a Yoshiki Watabe e Yasuko Kuramitsu, que conseguem colocar delicadeza e choque na mesma obra, sem que uma machuque a outra. A cena em que o casal se banha em águas termais no meio de destroços e são surpreendidos por elefantes é o exemplo de um timing bem feito: mesmo em um ambiente desfavorável para que o amor aconteça, o menos esperado se revela cativante.

Cena da série Alice in Borderland. Na imagem, o coadjuvante Shuntarō Chishiya parece contemplar algumas reflexões. A câmera o captura a partir dos ombros. Ele é um homem asiático de cabelos claros longos e olhos escuros. Chishiya veste um moletom com capuz na cor branca e, em seu pescoço está localizado um dispositivo eletrônico e tecnológico que se assemelha a uma coleira de metal.
Odiado por alguns, amado por outros, Chishiya contém a dose exata de antipatia e carisma que conquistou o público (Foto: Netflix)

Derivado do mangá do artista Haro Aso, a produção audiovisual é fiel às características dos quadrinhos, seja no comportamento das personagens ou nas cenas dramatizadas. Shuntarō Chishiya (Nijirō Murakami), um dos coadjuvantes, exala a personalidade de anti-herói costumeira de alguns animes: silencioso, observador e insensível, de um jeito atrativo que chega a ser justificável; tal qual Itachi Uchiha, de Naruto

Em contrapartida, é interessante ver a forma que a adaptação se desvencilhou do exibicionismo sexual recorrente desse gênero. Mesmo que o uso de biquínis e shorts por Hikari Kuina (Aya Asahina) e Ann Rizuna (Ayaka Miyoshi) ainda seja incoerente para a narrativa, não se equipara à sexualização corriqueira dos desenhos asiáticos. 

Em evidência na 2ª temporada, os distintos passados dos criadores dos jogos, os fatídicos cidadãos de Tóquio, trazem profundidade para os oito episódios inéditos de Alice in Borderland. Ainda que os jogos sejam divididos em naipes, nos quais as Espadas significam a exigência física, Paus necessita da união em equipe e Ouros clame por inteligência, todos parecem ter em comum a carga emocional de uma partida de Copas.

Cena da série Alice in Borderland. Na imagem, a Rainha de Copas olha fixamente para Yuzuha Usagi e Ryōhei Arisu. Porém, a câmera somente captura ela e a partir do busto. A Rainha é uma mulher asiática de cabelos longos e pretos em franja. Os seus olhos são escuros. Ela veste um vestido sem mangas na cor preta com detalhes de flores em branco. Também usa luvas pretas que vão até metade do braço. No seu pescoço está pendurado um colar de cristais. Ao fundo, o cenário é um jardim florido em verde e branco. Ela está sentada em uma cadeira branca.
Riisa Naka entregou muita tortura psicológica como a Rainha de Copas (Foto: Netflix)

Em especial, o terceiro e sexto capítulos atingem o primor da sensibilidade do audiovisual. Neles, o imponente e confiante Rei de Paus se revela um vocalista movido pelo laço com os amigos de sua banda e, igualmente a flor-da-pele, o Rei de Ouros ensina sobre o valor da vida para Chishiya, finalmente se libertando de erros nostálgicos. 

Não recomendada para menores de 16 anos, a série da Netflix coloca em cena enormes explosões, ferimentos expostos e embates grotescos pela sobrevivência. Frente a este desafio, a equipe de caracterização e maquiagem faz um trabalho surpreendente ao conseguir trajar o realismo com fidelidade; afinal, são muitas as personagens que nasceram após horas na cadeira do camarim. 

Entre elas, o irritante e completamente desfigurado após a primeira temporada, Suguru Niragi (Dori Sakurada), renasce do fogo e está de volta para provocar o nojo e o ódio. Já Morizono Aguni (Sho Aoyagi), também retorna com rancor em excesso, mas acompanhado de Heiya (Yuri Tsunematsu), a jovem arqueira que precisou ter a perna amputada e a quem ele protege com todo o seu coração de gigante.

Cena da série Alice in Borderland. Da esquerda para a direita na imagem, as personagens Kōdai Tatta, Suguru Niragi, Hikari Kuina, Ryōhei Arisu e Yuzuha Usagi se encaram em meio ao cenário de um jogo. Tatta, Niragi e Arisu são homens asiáticos de cabelos e olhos escuros. Já Kuina e Usagi são mulheres asiáticas de cabelos e olhos escuros. A câmera captura todos em pé, exceto Kōdai Tatta que está agachado. Tatta veste camiseta, bermuda e boné em tons azuis. Surugu Niragi veste uma manta de estampa que cobre seus ferimentos. Hikari Kuina veste um sutiã azul, um colar, uma calça jeans azul com cinto e tênis na cor branca. Ryōhei Arisu veste uma camiseta branca, calça jeans azul e tênis na cor branca. Yuzuha Usagi veste uma regata de cor vermelha com legging e tênis na cor preta. Ele segura uma arma. O cenário é composto por um céu azulado e repleto de containers de diversas cores.
A caracterização da série se destacou por valorizar os elementos visuais do mangá (Foto: Netflix)

Dividindo opiniões e separando os espectadores em fãs e haters, a cena final, diferente de tudo que foi mostrado ao longo de duas temporadas, não tem nada de mirabolante, deixando uma série que percorreu um caminho cheio de plot twists, com um final comum até demais. O que pode parecer um problema, acaba sendo o preço pela fidelidade da adaptação ao final do mangá, que o mantém idêntico ao produzido por Aso. 

Repleto das referências mais óbvias a Alice no País das Maravilhas o jogo de críquete, as rosas brancas e a risadinha cínica da Rainha de Copas aumentam a animosidade para as últimas cenas que levam a atriz Riisa Naka ao melhor de sua atuação. Além de Arisu, a Rainha de Copas é a referência mais óbvia ao clássico de Lewis Carroll: manipuladora e bem humorada, a vilã consegue ser a favorita de muitos.

Cena da série Alice in Borderland. Na imagem, Ryōhei Arisu observa Yuzuha Usagi, desfocada pela câmera que captura ele a partir da cintura e ela a partir do busto. Arisu é um homem asiático de cabelos e olhos escuros. Usagi é uma mulher de cabelos e olhos escuros. Ele veste uma camisa cinza simples e um curativo no rosto. Ela veste uma camiseta branca simples e se apoia em uma muleta. Ao fundo, o cenário é o refeitório extremamente branco de um hospital.
No Brasil, o mangá de Alice in Borderland chega em breve às prateleiras pela editora JBC (Foto: Netflix)

Vida, vida, vida, que seja do jeito que for“. Inesperadamente, a canção Maravida de Gonzaguinha poderia facilmente ser a inspiração para as salas de jogos dessa temporada. Adicionando aprofundamentos morais baseados em suas trajetórias antes dos jogos, os reis, valetes e rainhas carregam algo em comum: os questionamentos sobre o valor da vida. Mesmo que rodeados pela morte, a vivência de cada um carrega significados profundos.

Sutilmente mostrado na primeira temporada com o exemplo de Chapeleiro e Aguni, os ideais sobre ela são reforçados por cada representante de jogo; carregando suas próprias peculiaridades, mas com a mesma intenção, mostrar o quão preciosa e o quanto precisa-se de fidelidade a si mesmo para conhecer sua jornada, dando a Arisu a lição mais valiosa da temporada. E quanto a você, já descobriu sua própria razão de viver?

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