Vitória Lopes Gomez
“Tempo, espaço e realidade são mais do que caminhos lineares. São um prisma de possibilidades sem fim, onde uma única escolha pode ramificar-se em realidades infinitas, criando mundos alternativos daquele que você conhece”, narra o Vigia (Jeffrey Wright) ao começo de cada episódio de What If…?. Assim, em sua primeira animação para o streaming, a Marvel revisita mais de 10 anos de produções do estúdio e se arrisca a questionar: “e se momentos cruciais do universo cinematográfico tivessem acontecido só um pouquinho diferente?”. É ponderando a questão e suas implicações que a série antológica explora possibilidades e realidades alternativas, mas só para deixar a pergunta maior sem resposta. E se a Marvel resolvesse mesmo arriscar?
Devidamente introduzidos às inúmeras chances do multiverso desde Loki, que abriu as portas do tal prisma de possibilidades, What If…? usa cada um de seus nove capítulos para distorcer o que já é conhecido. Começando pelo começo, o primeiro episódio imagina o que teria acontecido se Steve Rogers não tivesse se tornado o Capitão América. E se… a Capitã Carter fosse a Primeira Vingadora? coloca a agente Peggy Carter (Hayley Atwell) para tomar o soro do supersoldado, e o grande mocinho dos Vingadores vira coadjuvante para a nova heroína. A temporada já se inicia audaciosa, afinal, os eventos originais que inspiraram a narrativa acontecem em Capitão América: O Primeiro Vingador e a mudança proposta ecoaria em todo o universo da Marvel, já que o surgimento do herói é o pontapé da ordem cronológica dos filmes.
Só que What If…? não vai tão longe: ao longo dos 30 minutos de cada episódio, um arco se inicia e, à princípio, se encerra, sem explorar muito o que vem depois. Nisso, a liberdade que o formato antológico concede favorece as histórias soltas e a série não precisa se preocupar em destrinchar os eventos que seguem. Ainda que estejam inseridos na mesma linha do tempo, os capítulos, aparentemente desconexos um do outro, se desenvolvem em diferentes estilos e agradam gostos diferentes, assim como o estúdio tem feito nos cinemas, e o descontentamento com um não precisa se repetir em outro. No de Peggy, porém, a série já indica o terreno seguro que continuará a seguir.
Com a nova Primeira Vingadora assumindo o escudo, as consequências poderiam ser incontáveis, mas os resultados finais não são tão ousados quanto prometem. Steve (Josh Keaton) é quem assume a armadura rústica do Homem de Ferro, Bucky (Sebastian Stan) não morre e, consequentemente, não vira o Soldado Invernal, tampouco assassina Howard Stark (Dominic Cooper). A longo prazo, a Guerra Civil que dividiu os Vingadores não aconteceria. Antes disso, talvez nem o Homem de Ferro de Tony Stark existisse, Visão não seria criado e Wanda não chegaria ao ponto de ajudar a abrir o multiverso, o que possibilitou What If…? em primeiro lugar. A série provoca e suscita a imaginação quanto ao futuro só para, já na primeira temporada, minar muitas das possibilidades que cria, usando do discurso repetido de “todos os caminhos levam ao mesmo final”, que o Doutor Estranho comprovou.
Apesar de influenciar o gigantesco universo em comum da Marvel, a série criada por Ashley C. Bradley não corre o risco de arriscar o que a empresa já construiu até aqui e, mesmo assim, segue pelo caminho cauteloso. A temporada aproveita da (aparente) liberdade de não ter uma grande responsabilidade em mãos para, amparada pelas infinitas possibilidades do multiverso, divagar em divertidas aleatoriedades. No segundo episódio, por exemplo, a produção se pergunta o que teria acontecido se Yondu (Michael Rooker) tivesse capturado T’Challa (Chadwick Boseman), e o Príncipe de Wakanda se tornasse o Senhor das Estrelas, ao invés de Peter Quill (Brian T. Delaney).
Se, por um lado, a linha do tempo é alternativa o suficiente para não arruinar 10 anos de trabalhos cinematográficos, por outro, a série traça paralelos claros com o MCU. What If…? referencia os filmes, recria situações, refaz cenas e diálogos para se encaixarem no novo contexto, e até provoca para uma possível continuação de cada capítulo, como a Marvel sabe bem fazer. No segundo, a sequência do Senhor das Estrelas passeando pelo espaço com o toca fitas em mãos é idêntica a de Guardiões da Galáxia, mas é T’Challa quem a protagoniza. Para não deixar pontas soltas, Quill também faz sua aparição, alheio ao que poderia ter se tornado enquanto trabalha em uma lanchonete.
Como viajar pelo multiverso não é tão simples assim, o desenho animado foi essencial para garantir que os cenários improváveis saiam do papel. Assim como o roteiro da série, porém, o estilo das animações não é chamativo e nada marcante, quando tudo ao nível do estúdio promete ser. Segundo o chefe de desenvolvimento visual da Marvel Studios, Ryan Meinerding, a escolha pela técnica 3D do cel shading foi empregada para refletir os filmes e se inspirar em ilustradores americanos clássicos, em uma homenagem aos quadrinhos. Mais uma vez, a tentativa de se associar aos live-actions do MCU e de não fazer de What If…? algo completamente original e fora da caixa, como a proposta permitiria, desperdiça o potencial da série.
A dublagem também não é novidade e faz o máximo para manter a produção na zona de conforto: com exceção de alguns personagens, como o Homem de Ferro (Mick Wingert), a Capitã Marvel (Alexandra Daniels), a Viúva Negra (Lake Bell), o Homem-Aranha (Hudson Thames) e o Capitão América, os atores dos longas reprisam seus papéis e dão voz às suas versões animadas. Só que poucos deles têm a chance de trabalharem com algo diferente do que fazem à frente das câmeras, já que os heróis mantêm suas personalidades, jeitos e maneirismos até na realidade alternativa. T’Challa e o Vigia são alguns dos únicos que ganham novas facetas.
Participando de dois episódios da temporada, Chadwick Boseman, o intérprete do Pantera Negra falecido em 2020, conseguiu dar uma cara diferente para seu personagem em um deles, quando assume o posto de Senhor das Estrelas. Apesar de manter a essência nobre do vigilante de Wakanda, o ator pode brincar e sair do molde dos filmes, no que foi sua última participação na Marvel. Já o Vigia, dublado por Jeffrey Wright, estreia no universo do estúdio como o narrador onipresente de What If…? e é a única novidade real da série. Assim como nos quadrinhos, ele assiste os acontecimentos sem poder interferir e nos guia através dos desdobramentos do multiverso. Na dublagem brasileira, a maioria dos intérpretes originais também retornam com a versão animada de seus personagens.
Outra vantagem do desenho, que tenta corrigir a falta de personalidade da técnica empregada, são os diferentes gêneros e estilos escolhidos para cada episódio. Enquanto E se… o Doutor Estranho Perdesse o Coração e não as Mãos?, em que Stephen Strange (Benedict Cumberbatch) perde sua amada ao invés do controle das mãos, entrega uma aura sombria e tensa, em E se… Zumbis?, assistimos aos acontecimentos de Vingadores: Guerra Infinita e Homem Formiga e a Vespa se desdobrarem em um apocalipse zumbi. O capítulo reúne novamente os heróis do MCU, desde o Homem-Aranha até Gamora (Cynthia McWilliams) e Okoye (Danai Gurira), para enfrentarem a ameaça juntos, no que é um dos episódios mais divertidos da temporada. Já em E se… O Mundo Perdesse Seus Heróis Mais Corajosos?, presenciamos Nick Fury (Samuel L. Jackson) falhar em formar os Vingadores, ao longo de 30 minutos cheios de ação e espionagem.
Durante 8 episódios, What If…? levanta as perguntas certas e seu maior erro é justamente respondê-las. Ao final do oitavo e penúltimo capítulo, Ultron (Ross Marquand) vence a disputa pelo corpo do Visão, conquista as seis Joias do Infinito e ameaça a paz através do multiverso, como Aquele Que Permanece (Jonathan Majors, em Loki) havia avisado. A partir daí, tudo o que aconteceu até ali na temporada é retomado exatamente da onde parou: nem o Vigia conseguiu derrotar a Inteligência Artificial e, quebrando sua regra número 1 de não interferir, recruta os protagonistas de cada episódio no momento seguinte ao que cada um se encerrou. Juntos, eles formam os Guardiões do Multiverso e partem para a batalha.
Mesmo sem (quase) nunca fugir completamente dos moldes de sucesso, a Marvel Studios encontrou no streaming o lugar para ampliar seus conteúdos e explorar personagens, narrativas e formatos que não teriam lugar nos cinemas. Enquanto WandaVision, a primeira grande aventura destinada à TV, diversificou gêneros e homenageou sitcoms, Falcão e Soldado Invernal deu espaço para personagens e assuntos improváveis de parar nas telas em produções solo. Loki, por sua vez, finalmente reconheceu o queridinho vilão, trabalhou suas nuances poucas pinceladas nos filmes e usou o Deus da Trapaça para adentrar de vez no multiverso.
Já What If…?, a partir do momento que revela que os episódios antológicos estão, na verdade, conectados entre si e construíram juntos o caminho para o grand finale da temporada, esvazia sua própria proposta. A série certamente não foi feita para as salas de cinema, mas não passa do medíocre e joga fora as oportunidades de sua premissa. Ao final, a sinopse sonha mais alto do que a empresa permite e a produção se contenta em apenas reforçar e reaplicar a fórmula Marvel ao longo da temporada.
Se isso acontecesse só nos episódios, porém, até seria perdoável, já que cada um deles têm começo, meio e fim e funciona de forma independente, com espaço para imaginar dentro de sua própria meia hora de duração. Só que não o fazem o suficiente e, até em uma realidade alternativa, a conclusão é a mesma: após o recrutamento dos Maiores Heróis do Universo, o grupo ruma a batalha, perde, se reúne novamente e, depois de um confronto final, triunfa. Nada de novo através do multiverso da Marvel.