Vitória Lopes Gomez
Se o Cinema é um modo divino de contar a vida e esta não se preocupa com a originalidade, toda história é inédita. É assim que, em uma Hollywood cheia de premissas batidas, o roteirista ganhador do Oscar Alan Ball se inspirou na vida real e transformou uma sinopse repetida em uma sensível e comovente road movie sobre repressão familiar, pertencimento e aceitação da sexualidade. Em Tio Frank, o passado não fica para trás, mas ecoa no presente.
No longa, Betty (Sophia Lillis) se sente deslocada na cidadezinha interiorana e conservadora em que vive, na Carolina do Sul, e se muda para Nova Iorque para fazer faculdade. Longe de casa, ela reencontra o tio Frank (Paul Bettany), reconhecido e admirado professor na universidade, e logo descobre que ele vive uma vida diferente da que é conhecida pela família: o tio preferido da menina é gay e casado há anos. Quando uma tragédia familiar os força a voltar para sua cidade natal, a viagem faz com que os dois conheçam mais um sobre o outro e sobre si mesmos.
É através dos olhos e das palavras de Betty que conhecemos e acompanhamos o personagem do título: Frank Bledsoe é professor de literatura, inteligente, divertido e atencioso, como ela mesma o descreve. Ele logo contrasta com o restante da família e a menina não entende o porquê do tio ser o alvo das piadas do irmão e dos maus tratos do pai, o cruel Daddy Mac (Stephen Root). Betty, que também se sente diferente e incompreendida, se identifica com o parente e o admira, mesmo que ele se mantenha distante e resguardado no ambiente familiar.
Anos depois, a narradora escapa da sua cidade natal em direção a Nova Iorque, assim como Frank fez. A sobrinha o tem como exemplo, mas as expectativas são idealizadas quando sabe tão pouco sobre ele. Quando ela conhece o tio longe do restante da família, vivendo plenamente e feliz ao lado do marido Wally (Peter Macdissi) e sem ter que esconder a sexualidade, o progressismo se contrapõe ao conservadorismo da criação.
Frank receia a reação da menina com a descoberta, já que ela cresceu no mesmo ambiente preconceituoso que ele. Recém-chegada na Nova Iorque dos anos 70, a Betty de Lillis é inocente e divertida ao se deparar com as diferenças na cidade grande e não falha em acolher o tio. Apesar das dores do passado, a leveza e a ternura da relação dos dois, somadas aos alívios cômicos que vêm a calhar, criam o tom ideal para uma condução leve e agradável na mão de Ball, que também assume a direção. Isso até que a notícia da morte de Daddy Mac obriga a dupla a viajar de volta para casa.
Tio Frank é perspicaz ao engatar em uma roadtrip: de Nova Iorque à Carolina do Norte, uma longa viagem de carro é o jeito ideal para Frank e Betty se aproximarem ainda mais. Além do ritmo do filme, o cenário também muda e, saindo da cidade grande rumo ao interior, quanto mais a paisagem se torna rural, mais Frank tem que se esconder e se reprimir.
Os flashbacks relembram o início da intolerância e dos maus tratos do parente, que nunca aceitou o fato de Frank ser gay. A repressão e o preconceito velados o afastaram, mas, apesar de ter escapado e construído uma vida para si mesmo, longe da opressão e dos disfarces, ser forçado a se esconder e não se sentir acolhido e pertencente à própria família não são traumas esquecidos ou superados facilmente.
Entre os problemas com o álcool e a dificuldade de se deixar ser amado pelo parceiro, que acompanha a viagem do tio e sobrinha escondido, mostram como o passado ainda ecoa e afeta o presente de Frank. E confrontar a figura do terrível pai, que mesmo depois de morto ainda faz questão de ofendê-lo, desencadeia o pior nele.
Ganhador do Oscar de Melhor Roteiro Original por Beleza Americana, Alan Ball é afiado nos poderosos diálogos e na direção simplista, que vai da atmosfera leve à densa ao passo que o protagonista de Bettany retorna à sua origem. Somado à fotografia com iluminação e tons naturais, o trabalho do diretor e roteirista permite que seus personagens existam naquele ambiente dos anos 70 no sul estadunidense. Felizmente, até quando a narrativa segue por um lugar comum e previsível, o foco continua neles.
Se Uncle Frank, o título original do longa, é sobre o tio Frank, Paul Bettany brilha. À medida que o longa avança e o protagonista se aproxima de casa, o ator descasca as camadas de seu personagem e o ressentimento passa a consumi-lo. Mesmo que o intérprete do Visão não seja o ideal para encarnar as vivências de Frank – não tinha nenhum ator gay igualmente competente em Hollywood? -, Bettany imprime a dor e a mágoa ao mesmo tempo que a doçura e o carinho, em uma performance sensível, emocionante e, nos minutos finais, verdadeiramente comovente.
Só que não só de Frank se faz Tio Frank: a narradora de Sophia Lillis é inocente e divertida, e seu carinho pelo tio é a esperança em meio à família. Junto do Wally de Peter Macdissi, que é caloroso e acolhedor mesmo na dor da sua própria jornada como um homem gay muçulmano, os dois são o respiro para Frank e para o longa. Na Carolina do Norte, a mãe (Margo Martindale) e a cunhada (Judy Greer) do protagonista, ao final, transparecem suas boas intenções e o Daddy Mac de Stephen Root sabe se manter desprezível e nojento até depois de sair de cena.
Após a boa recepção e as críticas positivas no Festival de Sundance de 2020, onde estreou, a produção independente foi adquirida pela Amazon Studios e destinada ao streaming da empresa. Tio Frank foi oficialmente lançado para o público no Prime Video e a exibição na TV rendeu uma indicação ao Emmy 2021 na categoria Melhor Telefilme. O longa concorre com Oslo, da HBO, Natal com Dolly Parton, da Netflix, Robin Roberts Presents: Mahalia, do Lifetime e O Amor de Sylvie, também do Prime Video.
Um dos favoritos para sair com o troféu, Tio Frank se inspira na vida real para mostrar que o passado ainda pode afetar o presente. Ninguém é obrigado a perdoar aqueles que machucaram, por mais próximos que sejam, e nem buscar a aprovação de ninguém, mas, se cada história é diferente, o sentimento de pertencer e se aceitar plenamente foi essencial para Frank.