Pokémon, de 1996, é a cultura pop japonesa encapsulada

Há 20 anos atrás, o primeiro game da série Pokémon fez a façanha de encapsular a cultura pop japonesa em um grande jogo portátil.

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Capa da versão Vermelha de Pokémon (1996), primeiro jogo da série.

Adriano Arrigo

Os kaijus (“monstros estranhos”, na tradução literal) são monstros gigantescos que habitam o imaginário japonês.  Apesar de serem enormes e com cara (quando tinham cara) de poucos amigos, eram queridos pelas crianças e, em especial, serviam de protetores do povo japonês contra ameaças externas.  Assim, os kaijus podem ser entendidos de duas maneiras: alguns são reflexos metafóricos da ganância humana, como o Hedorah, o monstro que surgiu da poluição emitida pelas indústrias; e, de outra forma, se comportam também como a personificação das forças naturais destrutivas que assolam o Japão desde sempre.

Nos meados dos anos 50, os kaijus eram altamente populares devido aos filmes do lagartão radioativo mais querido de todos os tempos, o sr. Godzilla. A despeito dos seus significados quase místicos para o povo japonês, a saga também obteve sucesso graças a técnicas simples (homens vestidos de monstros em meio a maquetes) que possibilitavam a batalha de monstros gigantescos.

Graças a um design de produção invejável para época, Godzilla proporcionou a criação de monstros num nível de imaginação tipicamente japonesa: muitas cores, gosmas escorrendo, fusão entre animais e elementos naturais e, claro, uma anatomia própria e funcional.

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A estranha anatomia de um Hedorah, o monstro feita da poluição humana

Maior exemplo disso é o arqui-inimigo de Godzilla, o Destoroyah, um daikaiju (“grande monstro estranho”, do prefixo dai, que em japonês significa grande) nascido da mutação de um crustáceo da era pré-cambriana que lança raios de micro-oxigênio para destruir seus inimigos.

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Destoroyah, o maior inimigo de Godzilla, guarda semelhanças com os pokémons Armaldo, Drapion e Scolipede

Na década de 70, o Destoroyah e seus tantos parceiros serviram de inspiração para uma pequena coleção de cartas denominadas Pachimons. Os Pachimons foram impressos num baralho desenvolvido por uma empresa de alimentos e contava com 53 monstros diferentes. Obviamente, tornou-se um sucesso no Japão.

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Alien Achiira, um monstro do espaço de 15 metros e 9 toneladas tem um biotipo muito parecido com o pokémon Sandshrew

Não podemos afirmar que Satoshi Tajiri, o criador dos pokémons, teve oportunidade de usar o baralho dos Pachimon para jogar, mas há de perceber que há uma estranha afeição entre os japoneses por monstros, independente do tamanho e formato.

Tajiri encapsulou suas ideias de monstro na década de 90 nos jogos da série Pokémon. Encapsulou  literalmente, pois a ideia do jogo é colocar 150 monstros diversos em pequenas capsulas, as pokébolas.

O jogo foi vendido em duas versões diferentes, a Azul e a Vermelha, sendo que, certos pokémons somente apareciam em uma dessas versões.

Dessa forma, Pokémon já nasceu fadado ao sucesso: como o povo japonês, que cresceu com seu imaginário povoado com tantos kaijus, poderia resistir ao desafio de colecionar 150 criaturas diferentes em um jogo eletrônico?

Talvez a escolha de lançá-lo em um console (videogame) portátil tenha só aumentado o sucesso; o Game Boy que já era sucesso da já famosa Nintendo, na época estava passando por uma remodelagem que, por ironia, também teria em seu nome a palavra pocket.

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O console Game Boy Pocket com o jogo Pokémon/Crédito: west_haven, Reedit

Então, em 1996, febre Pokémon se alastrou pelo Japão. Na trama do jogo, você viaja por um continente fictício chamado Kanto que, não por coincidência, também é o nome de uma região japonesa. Com referências diretas ao país de origem, o jogo ultrapassou a pequena tela cinzenta do Game Boy e tomou cores no mundo real. Em 1997, estava inaugurado o primeiro torneiro nacional de Pokémon, com direito a exibição na TV.

Mas para aqueles que não queria traçar uma rota no mundo real, o jogo proporcionava desafios e possibilidades inimagináveis. Além de colecionar os monstros, o jogador poderia colocá-los para batalhar, tal qual os kaijus faziam. Para isso, era necessário uma pequena estratégia que segue uma engenharia muito simples baseada nos elementos naturais (água, fogo, ar, terra, etc),  em que, pela lógica, água apaga o fogo, logo pokémons de água têm vantagem sobre pokémons de fogo, e assim em diante. Não obstante, os três pokémons iniciais representavam os elementos naturais mais comuns, água, fogo e grama, respectivamente Squirtle, Charmander e Bulbasaur.

Nesse sentido, Pokémon empresta outro já famoso jogo tipicamente oriental, o Janken, que todos os ocidentais conheceram como pedra-papel-tesoura ou, ainda mais perto dos brasileiros, o joquempô.  O famoso jogo tem origem no jogo Sansukumi-ken. Há três possibilidades: a lesma, o sapo e a cobra. Em Pokémon, temos uma tartaruga, uma lagarto e uma animal semente.

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Ao lado esquerdo, os três pokémons iniciais. Já no lado direito, temos o jogo sansukumi-ken/Crédito: Nintendo, Game Freak

Assim, o “treinador pokémon” deve montar um time equilibrado de habilidades e tipos de pokémon, como todo RPG que se preze. Nisso, o game também toma a engenharia emprestada de jogos clássicos com a saga Dragon Quest (1986) e Wizardy (1981).

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Da esquerda para a direta os jogos Dragon Quest, Wizardy e Pokémon. O sistema de batalha de Pokémon seguiu uma fórmula de sucesso que permanece até os dias atuais/ Créditos: Nintendo, Game Freak

Se não bastassem todos os desafios que o jogo propõem, há um vasto mapa para ser descoberto preenchidos por diversos tipos de textura gráficas que, somada a uma trilha sonora temática para cada lugar em que o jogador está, faz o jogador esquecer que Pokémon é um jogo feito para um console portátil tão limitado quanto o Game Boy. A ambientação criada com a junção desses elementos possibilita uma imersão total em sua pequena tela de 2.9 polegadas que, no limite de sua capacidade, é capaz de acompanhar o clima do jogo paralelamente ao humor do jogador.

Além de contém um cenário com cores frias, a cidade assombrada de Lavander exige um tema musical calmo e minimalista, porém com esporádicos ruídos e distorções ao fundo, como se houvessem fantasmas na trilha musical.

Fica difícil encontrar um jogo que misturou tantos elementos de uma forma tão divertida e econômica. Porém, em 20 anos de história, Pokémon se desdobrou em diversos enredos sob diversas plataformas, rendendo mais de 50 jogos diferentes, embora muito deles tenham divergido da proposta inicial do primeiro jogo da série.

Após 20 anos, temos hoje o recém-lançado Pokémon Go capaz de trazer ao nosso mundo pokémons reais, pelo menos através da tela do celular. Embora a época seja outra e Pokémon Go é o sonho consumado de diversos treinadores ao redor do mundo, Pokémon, de 1996, será sempre o clássico que maximizou a carga cultural japonesa em seus mínimos detalhes técnicos, históricos e folclóricos. No mais, foi a única chance até então que o mundo teve de experienciar genuinamente como o pequeno Tajiri coletava insetos em seu jardim, em alguém canto do Japão, e guardava-os em pequenas garrafas transparentes.

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