As veias abertas da América Latina: um presente, poético e catastrófico, à consciência histórica contemporânea

Vitor Soares

Vivemos hoje novas formas de vida, novos regimes precisam criar identidades que se adaptem a eles. Daí que é comum hoje governos e meios de comunicação inventarem um passado. Como dizia George Orwell, estamos em uma idade em que o presente controla o passado.” (Erick Hobsbawm, historiador britânico)

Aqueles que não conhecem a história estão fadados a repeti-la.” (Edmund Burke, filósofo irlandês)

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Quando a grandiosa obra do jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano foi escrita, no início dos anos 1970, o mundo vivia sob grande instabilidade política e ideológica. A década, que findava com o frenesi de Woodstock e o fortalecimento do movimento pacifista de contracultura, trazia consigo o temor de um cruel desfecho para a Guerra Fria que, indiretamente, matava aos montes nos campos de batalha vietnamitas. Nas Américas veio o chumbo golpista. O exílio, primeiro na Argentina e, posteriormente, na Catalunha, entre 1973 e 1985, mostra quão perigosa poderia ser a influência de Galeano para as ditaduras espalhadas pelo continente. Tendo vendido milhões de cópias ao redor do globo, As veias abertas da América Latina é provavelmente um dos olhares mais completos acerca da suplantação deste continente pelos interesses do Mercado Mundial.

O livro começa com uma denúncia sobre o trabalho infantil, mostrando desde o início o teor ácido dos relatos. E a primeira parte se desenvolve através dos acontecimentos em torno da riqueza das terras latino-americanas; passando pelas brutais conquistas europeias na América, não esquecendo das resistências indígena e africana, tão apagadas pela história. Galeano mostra como o capitalismo esgotou mananciais, solos e braços humanos nas Américas; e termina traçando um paralelo dessa conjuntura exploratória com a construção de um império, onde reinam as empresas – pequenas parcelas dos seres humanos.

O capítulo “As treze colônias do norte e a importância de não nascer importante”, ainda na primeira parte, explica a diferença entre a América além do México e abaixo dele, ao passo em que a segunda parte compreende o império estadunidense como um poder hegemônico de influência já estabelecido; levando a um entendimento mais atual das penúrias do continente tratado. Embora escrito no início dos anos 70, não perde a atualidade, assim como bem lamentou o próprio Eduardo Galeano em 2010.

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Galeano tende a se preocupar, quase sempre, com a questão dos trabalhadores ao longo do tempo – dos indígenas à classe proletária atual -, explorados na América Latina e Caribe. A luta de classes, o racismo, o machismo – entre outros tantos assuntos vigentes no contexto -, se fundamentam pelo senso crítico do próprio leitor à medida em que os fatos históricos são postos em reflexão. Com efeito, não à toa deve-se olhar o livro como um retrato; um compilado de relatos, dados e certezas, onde todas as formas de sub-humanização forçada são críveis e visíveis, dando ao espectador todo o necessário para uma única visão final: a América Latina vive, ainda hoje, a sangria das amarras históricas.

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Escultura Mão, de Oscar Niemeyer, na Praça Cívica em São Paulo. (Foto: Agência Brasil)

Manifestações artísticas a posteriori prenunciam um olhar semelhante sobre os trabalhadores. Quem chega na Praça Cívica do Memorial da América Latina, em São Paulo, encontra, esplendorosa, a escultura Mão de Oscar Niemeyer. Em toda sua simbologia estética, a obra pode dizer-se, com certeza, uma extensão daquilo que representa o livro de Galeano. Com 7 metros de altura, em concreto, é mais do que uma obra ideológica: trata-se de um reconhecimento, ainda que não libertador por si só – como o próprio Niemeyer disse a respeito da obra -, das penúrias do povo latino-americano. O mapa da América Latina, no centro da palma, d’onde verte até o pulso, como numa ferida, o sangue do continente, se encontra em baixo-relevo, como tentasse, Niemeyer, fazer entender quão cravada em nossa pele estão os males da história. A própria mão aberta e erguida, objeto central da escultura, pode significar a figura mais explorada ao longo do tempo: o trabalhador braçal – no caso, seu objeto de sobrevivência. Tudo é livre interpretação; vislumbre dos sentidos.

Do livro – sobre aquilo que se encontra estruturalmente -, não espere uma linha cronológica, pronta a lhe entregar soluções ou respostas direcionadas a isso ou aquilo. A estrutura na qual os fatos são narrados não se preocupa em delinear as conjunturas de cada tempo culminando numa progressão linear das viradas históricas. Muito pelo contrário: tudo é dividido em temas que podem partir de uma época a outra; Galeano conta fatos soltos no tempo. Isso não quer dizer que as conjunturas e as viradas históricas não estão presentes, mas que elas não estão ligadas à estrutura em que os fatos se inserem no livro.

Uma compreensão final sobre a importância de As veias abertas da América Latina, deve-se atentar para o quão prodigiosa fora a dominação de todos os povos da América Latina pelo capitalismo, tão evidenciada pelo autor. A classe trabalhadora atual vive na mesmice do salário no fim do mês e os mecanismos legais garantem enorme normalidade aos aspectos rotineiros e exploratórios da nossa sociedade. No livro, é mostrado como em toda a história os mecanismos legais corroboraram para a  crescente exploração contemporânea. Mais de 500 anos após atracar em terras do Novo Mundo, Cristovão Colombo, tudo se mantêm na mais perfeita normalidade entre exploradores e explorados. Sim! Um olhar para o passado – é tudo que propõe Galeano para que possamos entender tudo.

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Hugo Chávez presenteando Barack Obama com um exemplar do livro em 2009 (Foto: Portal G1)

Agora, como exercício de consciência, imagine o presidente do país símbolo do capitalismo mundial receber das mãos de um líder progressista um dos livros mais representativos da esquerda em todos os tempos. Não falo de um Marx, mas de um Galeano – dessas terras mesmas. Coisa rica de se ver!  Aconteceu numa reunião da Cúpula das Américas, em 2009. O então presidente da Venezuela Hugo Chávez presenteou o líder estadunidense Barack Obama com um exemplar de As veias abertas da América Latina. O gesto simbólico, em tempos onde a diplomacia amigável, ainda que falaciosa, predomina no continente, não passou de um ato irônico; nada mais que isso.

O livro entregue a Obama era uma edição em espanhol, língua não falada por ele. Ainda fosse em inglês! Teria algum presidente estadunidense sensibilidade e/ou desejo para entender a obra? Muitos quiseram saber. Em poucas horas, o livro chegou ao top 10 dos livros mais vendidos dos Estados Unidos. Mas de que ironia estamos falando? Se a resposta não lhe veio de imediato ou,  se por responsabilidade pessoal, sinta-se obrigado a compreendê-la por completo – a ironia e a história -, corra para a livraria ou biblioteca mais próxima e tome para si uma das mais trágicas histórias da raça humana: a minha, a sua e a de toda a América Latina.

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