O Cemitério, de Stephen King, enterra os receios do autor e (res)suscita uma história sóbria, intensa e muito assustadora

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Guilherme Reis Mantovani, estudante de Jornalismo da Unesp Bauru

O Cemitério (do original Pet Sematary – sim, a famosa música dos Ramones de mesmo nome é uma homenagem referencial à obra literária) é um romance de terror escrito por Stephen King na década de 80.  É interessante ressaltar que o autor revelou repulsa à sua própria criação em entrevistas pós-publicação, por sentir um pessimismo incômodo e irredutível no desfecho da história, bem como uma mensagem intrínseca repulsiva. Na verdade, após sua mulher também ter rejeitado o manuscrito original, King pretendia engavetar “n’O Cemitério”. O livro, no entanto, era parte de um imbróglio contratual do autor com a editora norte-americana Doubleday e precisava ser publicado. Pois aí estava a solução: livrar-se da obrigação contratual e do “livro visceral” ao mesmo tempo…

Mas como o mercado editorial não poupa ironias, rapidamente O Cemitério tornou-se um dos maiores sucessos do autor.

A taxação “o livro tão assustador que King não queria vê-lo nas prateleiras”, tornou-se um motor para o marketing da obra e acelerou as vendas potencialmente. A repercussão foi tamanha, que inspirou inclusive a produção de um longa-metragem em 1989, traduzido para o português como Cemitério Maldito, devidamente leal à obra progenitora e relativamente aclamado pela crítica especializada da época.

“O Cemitério” narra a história de Louis Creed e sua família – Rachel, sua esposa; Ellie e Gage, seus filhos pequenos; e Winston Churchill, ou apenas “Church”, o gato de estimação –, quando estes acabam de chegar de mudança em uma típica cidadezinha interiorana chamada Ludlow, no Maine (King of Maine é uma das alcunhas de Stephen King, dado que o mesmo, por ser oriundo deste estado, ambientaliza várias de suas obras nesta região). A mudança da família fora motivada pelo emprego novo de Louis, enquanto médico, como diretor da ala hospitalar de uma grande universidade local.

Logo ao chegar, a família faz amizade com o morador do outro lado da rodovia e, portanto, seu novo vizinho: o octogenário Jud Crandall, um senhor de histórias envolventes e cerveja sempre gelada. O confiante Jud revela o mistério por trás de uma misteriosa trilha nos fundos da casa que intriga a família desde sua chegada. Conhecedor antigo do local, Jud guia os Creed pelo caminho que desemboca em um simplório cemitério para bichos, revelado, construído e mantido por crianças de Ludlow ao longo de gerações para encerrar seus animais de estimação, sobretudo os vários que morreram atropelados na mencionada rodovia.

Com o roteiro também escrito por King, Cemitério Maldito se juntou a Conta Comigo e O Iluminado, só para citar alguns, como adaptações de sucesso do autor

À primeira vista, O Cemitério parece uma modernização do clássico conto de horror de W.W. Jacobs, A Pata do Macaco (por sinal, quem não leu este conto, procure por ele imediatamente!) Contudo, ao longo dos capítulos, nota-se que há muitos outros elementos presentes. A própria aura do cemitério de bichos suscita um dos primordiais componentes da obra, que vai muito além do mero “terror gratuito”: a morte. No tocante à inexorabilidade e imprevisibilidade da morte, Rachel, marcada pela traumatizante perda de sua irmã na infância, é sensível e temerosa; Louis, cético e realista; Jud, inseguro e curioso; e Ellie, que tem seu primeiro contato com a ideia de morrer após a visita ao cemitério, passa a encará-la com a ingenuidade e incerteza natural de uma criança. A perspectiva particular de cada personagem central diante da morte é curiosa, e representa o artifício que move o enredo, motivando discussões interessantes e intermináveis entre os leitores.

A partir do segundo ato, O Cemitério começa a abarcar fenômenos sobrenaturais, explicitando de fato o componente “horror” de seu gênero: é aqui que a história encorpa e se encaminha para um ponto crucial e explícito do enredo – afinal, até que ponto a mente humana consegue acompanhar tenebrosas fatalidades (e, no caso de Louis, crônicas) sem perder a sanidade? A loucura e o desespero são outras duas temáticas muito marcantes no livro.

Uma crítica frequentemente direcionada não apenas a Cemitério, mas a vários outros títulos de Stephen King, é a forma burocrática como a narrativa é conduzida: muitas vezes, King descreve e se prolonga em ações – ou mesmo características – levianas de seus personagens, que aparentemente não contribuem em nada para a fluidez do enredo. No entanto, são justamente estes momentos que oferecem complexidade aos mesmos, de modo que, no ápice do clímax, os leitores estejam muito mais envolvidos com os temores, desejos e emoções dos personagens do que estariam caso a história tivesse sido apressada. No terceiro ato do livro, somos infringidos pelo destino e pelas atitudes de Louis, por exemplo, de forma muito mais intensa do que se não tivéssemos experimentado a análise subjetiva, profunda e zelosa que o livro propõe ao longo da narrativa, conferidas especialmente em cenas pacatas.

O livro é carregado de ironias bem aplicadas, que indicam, inclusive, o desfecho da história como obra do destino, movido talvez por uma força maior além da capacidade das personagens, embora em nenhum momento essa premissa apresente-se de forma definitiva na história, configurando-se subjetivamente e propondo a interpretação particular. Tais ironias oferecem ainda um viés amargo e triste à agonia crescente na história de forma muito viciante: é simplesmente impossível desgrudar da história em suas paginais derradeiras. A escrita crua e sem piedade de King (especialmente na descrição de algumas cenas viscerais e insólitas) é capaz de vidrar o leitor com maestria; ela ressoa em nossas mentes, sobretudo porque toca no sentimento que sabemos ser real: nossa insegurança diante da morte. Não importa o quão amável e feliz seja o lar dos Creed – ou de cada um de nós –, ele pode ser invadido pela morte a qualquer momento. E quando a morte chega, ela muda para sempre a existência de quem toca.

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