Morte e Vida Severina: Companhia Estável de Dança de Bauru evoca toda força poética de João Cabral de Melo Neto

O espetáculo com coreografia inédita de Arilton Assunção estreou em 1º de setembro, mas dia 14 marcou a abertura da mostra do Festival de Artes Cênicas (FACE) de Bauru, neste ano em sua 8ª edição.

Ensaio dos bailarinos da Companhia Estável de Dança de Bauru para o espetáculo “Morte e Vida Severina” (Foto: Loriza Lacerda/Reprodução)

Vinícius Nascimento

O novo espetáculo “Morte e Vida Severina”, estrelado pela Companhia de Dança Estável de Bauru no teatro Celina Lourdes Alves Neves, é uma adaptação do poema de mesmo nome de João Cabral de Melo Neto publicado em 1955. O mesmo poema já ganhou versão cinematográfica em 1977 e 2010, além de adaptação para TV pela Globo em 1981, o que demonstra a riqueza que o material original tem e como diversas linguagens se apropriam do texto sempre propondo uma releitura atual da obra.

As luzes se apagam restando um pequeno facho entre o palco e as primeiras cadeiras, por ele é iluminada uma atriz convidada. As cortinas permanecem fechadas enquanto a atriz começa a declamar um poema feito em homenagem à companhia. As cortinas são abertas. A primeira cena: os bailarinos estão reunidos no centro, entrelaçando-se, enquanto um deles suspenso pelos outros despeja água de uma moringa – jarro de barro ou cerâmica – sobre os companheiros desesperados, com vontade de sobreviver.

“…ou a morte às claras por bala/ se a fome não faz o serviço/ e a morte que se vai vivendo/ do homem na modalidade bicho…” – trecho do poema de Geraldo Bergamo recitado no início da apresentação (Foto: Loriza Lacerda/Reprodução)

Conforme somos conduzidos pela narrativa percebe-se que o destino daqueles retirantes está envolto na capacidade de resistirem a estiagem, como fé e delírio estão conectados, fazendo com que perseverem. O tempo todo a seca os persegue, muito bem representada pela figura de um crânio de boi tomado pelos dançarinos um a um. Seus movimentos serpenteiam o espaço, tornando-se presentes, a espera ou em busca de onde quer que vão os severinos.

A expressividade do corpo projetado pela coreografia inédita desta apresentação reposicionou a obra dentro de um contexto contemporâneo. A tensão dos corpos que carregam outros, como se fosse uma cruz ou liteira feita de tronco e lençol, cria um peso gravitacional, nos atraindo para aquela realidade. Quando os bailarinos se sucedem correndo e pulando no ar jogando canela, criando uma nuvem de poeira, seus passos são expansivos e ornamentais.

As roupas dessa figura encapuzada (dir.) a distinguem dos outros personagens num outro plano existencial (Foto: Rebeca Almeida)

Pega, mata e come

Os corpos aqui insinuam-se carcarás, sobrevoam o sertão em busca de alimento. A coreografia é maximizada pela iluminação, compondo  projeções das sombras dos dançarinos na parede no fundo do palco. A mimetização é o ponto mais alto da composição visual. Noutro momento, cenas são apresentadas em flashes – as luzes se apagam e quando voltam vemos os dançarinos dispostos numa montagem que remete a composições da arte pictórica, vide “Retirantes” de Candido Portinari. Assim como a sobreposição que fez coexistir na mesma cena a seca em busca de um severino em primeiro plano, a liteira sendo carregada no segundo e, no último plano, a procissão.

O simples elevou ainda mais o papel da coreografia, com o uso de tons pastéis colocou no mesmo plano diferentes singularidades, enriquecendo a dimensão coletiva que os personagens tem, os milhares de severinas e severinos existentes. Assim como a música além de criar uma atmosfera adicionava profundidade na temática, ressaltando aspectos culturais, políticos e religiosos.

Fé como mecanismo perseverança (Foto: Rebeca Almeida)

Comparando as duas apresentações, a melhor execução foi em sua estreia. As pequenas alterações, no que diz respeito a ritmo e iluminação, fizeram com que a segunda apresentação não explorasse totalmente seu potencial, principalmente no efeito visual entre luz e sombra. Como um todo a obra é magnífica: o trabalho dos dançarinos ora demonstrando força e rigidez, ora suavidade nos passos; a trilha sonora como recurso narrativo importante para expandir o enredo; o figurino com poucos elementos fazendo saltar uma identidade compartilhada entre os personagens, além do trabalho de produção que proporcionou a realização deste espetáculo. Sobre a mostra FACE, toda a programação pode ser acompanhada pela página do evento no Facebook do festival.

2 comentários em “Morte e Vida Severina: Companhia Estável de Dança de Bauru evoca toda força poética de João Cabral de Melo Neto”

  1. boa noite ! Vinicius Nascimento, meu nome é Sivaldo Camargo não sei se chegou ao seu conhecimento, mas sou Diretor Artístico e professor da Companhia Estável de Dança de Bauru, gostei muito do seu texto sobre a coreografia Morte e Vida Severina, mostrou conhecer e ter um domínio da linguagem, porem faço algumas observações. Em nenhum momento você menciona quem é o responsável para que tudo que relatou se tornasse possível, ignorou que a Companhia tem um Diretor que começou a pensar e elaborar o que descreveu, esse mesmo diretor escolheu e fez a proposta para o coreografo e acompanhou todo processo de criação e produção. Convidar figurinista, fotografas e todo equipe envolvida, também acredito que em uma critica, o elenco que são os protagonistas do trabalho devam no mínimo ter seus nomes citados, mas agradeço muito sua critica e acredito que em Bauru, flata críticos de arte com sua competência ! abraço amigo.

    1. Boa tarde, sou o Vinícius, fico muito feliz que tenha chegado até você o texto e também pelos seus apontamentos, principalmente no que confere a creditação dos dançarinos e maior relevância de suas performances, assim como tambem sobre concepção do espetáculo, sem dúvida uma falta de atenção de minha parte, mas que os próximos textos venham com maior maturidade na percepção estética.

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