O homem que caiu em Berlim

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Nilo Vieira

Em 1976, David Bowie fez sua primeira grande aparição no cinema, no papel do alienígena Thomas Jerome Newton, em O Homem Que Caiu Na Terra. Nenhuma grande novidade, visto que encarnar um extraterrestre já havia lhe rendido o estrelado anos antes e sempre fora, em essência, um artista visual. No entanto, o filme dirigido por Nicolas Roeg adiantaria não apenas a capa do próximo disco do britânico, como também realçou um aspecto peculiar em sua carreira até então: a fragilidade humana.

Confrontado com um território novo e estranho, Newton acaba alienado pela tecnologia e entediado, embora sua inteligência seja muito acima da média. Essa mesma relação também se deu entre Bowie e a cidade de Berlim, e resultou em um de seus álbuns mais aclamados, Low.

Embora abertamente inspirado pelos compassos fragmentados e texturas futuristas do krautrock de bandas como Neu! e Kraftwerk, esta primeira colaboração do camaleão com Brian Eno passa longe de uma emulação banal. A identidade bipolar do LP fica ainda mais clara considerando o formato do vinil: enquanto o lado A investe em experimentos mais compactos com o rock tradicional, a face B explora composições mais longas e majoritariamente instrumentais.

A abertura com “The Speed of Life” pode soar como uma alucinação alien, mas logo “Breaking Glass” quebra o fluxo e parece trazer às coisas de volta ao planeta Terra.  Embora seja a mais curta do álbum, é recheada de detalhes: a guitarra solo executa bends como se estivesse de ressaca, aparece um riff grave e, logo em seguida, Bowie invoca um pequeno barulho – tanto após proferir o verbo “ouça!” como depois de dizer “veja!”; é como se usasse da sinestesia para dizer, nas entrelinhas, que ainda está desnorteado, contrastando com o aparente realismo nu das letras. Então, aparece um trecho que diz “você é uma pessoa maravilhosa/ mas tem problemas”, onde não é possível distinguir se é um desabafo de outra personagem ou do próprio eu-lírico. Isso tudo em uma música de menos de dois minutos.

E Low não para por aí. A frenética “What in the World”, com a participação do companheiro Iggy Pop (que teria ajuda de David nos dois álbuns que lançaria naquele mesmo ano), é um belo exemplo de como ir além dos padrões pop e permanecer palatável, enquanto “Be My Wife” é Bowie mostrando ser possível permanecer fiel à uma essência, mesmo sob constantes experimentos. “Always Crashing in the Same Car” e “A New Career in a New Town” equilibram as coisas ao adotar ritmos mais cadenciados.

Todavia, a peça mais comentada da primeira metade do álbum, com justiça, é o single “Sound and Vision”. Nela, cada instrumento parece executar um estilo musical diferente, e o resultado final é de uma consistência invejável: apesar da natureza roqueira, o baixo toca funk, os vocais brincam de soul e o teclado é puro pop. Bowie entoa “E vou cantar/ esperando pelo presente do som e visão”. Humildade é um atributo de poucos gênios, afinal.

Mas é no lado B onde o título do álbum se justifica (“baixo”). Formado por quatro faixas ambientais, reflete bem a situação sombria do artista na época. Após desenvolver um vício severo em cocaína, Bowie e Iggy se mudaram para Berlim no intuito de fugir da droga. Assim, a aura claustrofóbica invocada serve tanto como metáfora para as consequências do abuso da substância quanto para a escuridão que pairava na capital dividida por um muro, e essa ambivalência sonora bem demarcada no bolachão acaba ganhando até ares políticos. E David ainda tinha mais uma carta na manga.

Iggy & Ziggy: na arte e no vício
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Para se ter uma noção da influência de Low, basta pensar que Remain in Light não seria o mesmo sem seu lado A, enquanto Closer não existiria sem a parte B – e esses são apenas dois dos álbuns mais influentes da década de 80. Enquanto o Talking Heads também trabalharia com Brian Eno na sua obra-prima, o nome original do Joy Division, Warsaw, viria da oitava faixa do álbum. Mas a grande popularidade da fusão entre Bowie e Berlim se solidificaria mesmo em outubro de 77, quando saiu o segundo capítulo da história, “Heroes”.

david bowie heroes

Desde a icônica capa, o irmão mais novo de Low é repleto de referências à cultura alemã. A foto é inspirada na pintura Roquairol, de Erich Reckel, o título é uma homenagem ao grupo Neu!, e “V-2 Schneider” tem esse nome graças à Florian Schneider, do Kraftwerk. Sem esquecer, é claro, da faixa-título, um dos maiores clássicos de Bowie: “Eu, eu me lembro/ De ficar em pé, próximo ao muro/ E as armas, dispararam sobre nossas cabeças”.

Estranho notar que, mesmo com a canção estando entre as três mais populares do cantor – incluindo várias aparições em trilhas sonoras de filmes, como em As Vantagens de Ser Invisível (2012) -, o álbum não tenha chegado na mesma aclamação crítica do antecessor. Apesar de não soar igualmente vanguardista numa primeira ouvida, só o processo de gravação da música já mostra que “Heroes” passa longe de ser um projeto simples.

Esta, aliás, é a maior vantagem que o irmão mais novo possui sobre Low. Com maior sutileza pop, os experimentos tendem a se situar de maneira mais homogênea e o disco soa, além de amigável, mais consistente no resultado final. A transição entre o dançante e o meditativo é desenvolvida com maior paciência, e assim o choque entre os lados do álbum se torna menor ao ouvinte casual.

Conquanto, o potencial radiofônico do álbum é mesclado com a tensão política da Guerra Fria, e lhe rende um diferencial soberbo. Quem diz que hits dançantes são mera massa de manobra para as rádios certamente nunca ouviu “Beauty and the Beast”, onde o groove serve de pano de fundo para versos carregados: “Há matança no ar/ Protesto nos ventos/ Alguém dentro de mim(…)” e “Eu queria ser bom/ Queria não ter distrações/ Como todo bom menino deve“. “Sons of the Silent Age” até inspira alguma esperança (“Faça amor apenas uma vez, mas sonhe e sonhe“), porém não sem uma desconfiança orwelliana por trás (“Eles nunca morrem, apenas vão dormir um dia“). O mesmo acontece com “”Heroes””, cujas aspas aparentam balancear a utopia de uma insurreição com a realidade cruel.

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Dez anos depois: Bowie no Muro de Berlim

Os traços de world music ganhariam ainda mais destaque no último álbum gravado pelo time formado por Bowie, Eno e Tony Visconti, o ainda mais sacolejante Lodger (1979). Mas este é, de fato, um LP de menor poder comparado aos seus parceiros de trilogia e sua recepção menos acalorada é compreensível. Já Low e “Heroes”, mesmo quarenta anos depois, ainda soam modernos e refrescantes. Destaques em uma discografia absurda, comprovam que, mesmo assumindo sua vulnerabilidade, um ser humano comum teria potencial para criar coisas incríveis – ainda que só por um dia.

Propaganda da época do disco: bajulações nunca foram mais justificadas
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