Para além do gênero, Laerte-se

laerteseAdriano Arrigo

Laerte é uma ótima representação de como as HQs se comportaram nos últimos 30 anos no país. Ácidos e meio desengonçados, seus inúmeros quadrinhos também são palco para inúmeros personagens carismáticos em traços simples que sempre revelaram seu lado humorístico, surreal e onírico, típico do universo das tirinhas brasileiras. Com mais de 30 anos de carreira, foi somente nos últimos anos que Laerte tomou os holofotes brasileiros, porém não por causa de seu talento inquestionável, mas sim pela sua identidade de gênero. Hoje temos a Laerte que, além de cartunista, é, por bem ou por mal, um dos centros das discussões de identidade de gênero.

E em Laerte-se, o primeiro documentário brasileiro produzido pela Netflix, é que Laerte merecidamente ganha uma cinebiografia. Infelizmente, em tantos anos de carreira que a fizeram parte dos cânones de um ciclo de ouro de cartunistas como Angeli, Glauco, Adão Iturrusgarai, Fernando Gonsales, entre outros, é um pouco triste ver que Laerte tenha recebido um documentário somente agora. E obviamente sabemos que não por coincidência. Hoje o assunto da transgeneridade ocupa grande espaço nas discussões contemporâneas e, por isso, é abordado como forma de oxigenar o enredo de produções audiovisuais. Então, Laerte-se é focado na experiência de Laerte e seu assumir mulher. Houve uma série de descobertas nos últimos anos que a fizeram chegar nesse momento de sua vida.

Travesti, bissexual, crossdresser e trans são conceitos que beiram diferentes esferas do aspecto humano e que causam confusão justamente por serem tabus e, de certa forma, criminalizados por setores conservadores. Sem ampla discussão, temas como esses dão um nó na cabeça de um sociedade estabelecida em conceitos de oposição, tais quais homem x mulher, feminino x masculino, heterossexualidade x homossexualidade, etc. Tanto para Laerte como para nós, as discussões sobre esses termos manifestam-se bastante positivas, levando a uma mudança de consciência que pouco tempo atrás seria difícil de atingir.

Então, não estranhemos se a protagonista pareça confusa e, inclusive, assuma que minorias das quais hoje ela faz parte já foram motivo de chacota por ela mesma. Em sua cinebiografia, Laerte tem a chance de ser a protagonista de sua própria história, errar e se redimir e, por fim, mostrar quem ela é hoje sem comparar com o que um dia ela foi.
Não que a produção tenha a intenção de camuflar ou apagar seu passado – a própria Laerte afirma que este é importante -, pelo contrário, Laerte-se apega-se a mostrar as fragilidades e as incoerências da sua protagonista. E se existem erros em suas posições, a carreira de Laerte é notoriamente construída de pedaços efêmeros que de alguma forma visibilizaram certos tabus. A comunidade LGBTQ+ inclusive, abraça Laerte há muitos anos desde que se viu representada quase diariamente pelo seu personagem Hugo, codinome Muriel.

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Muriel é o alter ego de Hugo, personagem de Laerte. Por muitos anos, esse foi uns únicos personagens nos quadrinhos brasileiros a tratar de crossdresser e de assuntos LGBTQ+, sem deixar de apelar a situações surreais e cômicas,  marca da cartunista.

E é irresistível querer traçar a linha tênue que há entre esse personagem e sua criadora – muito das vezes pelas suas percepções de mundo. Mas talvez o que há mais em comum entre ambos seja justamente a confusão, o ar cômico e a fragilidade que vemos no documentário.
Na produção, Laerte não é Hugo/Muriel, mas um conjunto de pormenores que pariu sua obra sob a influência de uma casa modesta e pouco organizada. No início do documentário, ela mesmo já avisa que ali pode não ser o antro do que esperam de uma pessoa comum; o olhar da pessoa que a entrevista, que, acertadamente, é Eliane Brum, jornalista e escritora de pormenores.

Laerte sente-se bastante à vontade em frente à câmera, tal como Brum, que é pega de meias sentada no sofá de Laerte. Não existem focos dramáticos na cara de Laerte, muito menos uma estrutura rígida de entrevista. Tudo parece um pouco improvisado – o que é bastante coeso quando estamos falando da cartunista – e Brum pouco interfere no ambiente, ao mesmo tempo em que parece ser parte da vida da cartunista.

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Laerte e Eliane

A química entre as duas ajuda na desconstrução de Laerte. E esse é o fio condutor do documentário, tal qual os espaços situados para mostrar que Laerte também é uma pessoa excessivamente normal, no senso comum da palavra. Em companhia de sua gata Cecilia, ela escolhe seus brincos, seus vestidos, empresta HQ’s de seu filho, brinca com o neto e toma banho (alerta para nudes). Às vezes, ela sente vergonha de si, acredita que pode ser uma farsa, ao passo que é muito confiante em discutir sobre a situação atual do país.

O documentário é planejado dessa forma para que essa intimidade seja criada a fim de dar veracidade às confissões da protagonista. É como se desse para ver uns fios desencapados e tudo fosse parte de uma grande gambiarra, como a própria Laerte diz sobre uma de suas exposições. Em seu próprio documentário, Laerte é confusa algumas vezes, não dá respostas, deixa um silêncio. Como em suas tirinhas, é a certeza que mesmo que possa ser questionada em suas afirmações, nunca poderemos dizer que ela não tratou com a sua verdade.

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