Em Vulture Prince, Arooj Aftab nos ensina a lidar com a dor

Centralizada está a cantora, com um microfone em sua mão direita, na parte esquerda da imagem. Seus olhos estão apontando para o canto inferior direito, a parte do rosto dela que está na parte esquerda da imagem não é reconhecível. No canto superior esquerdo está escrito “Arooj Aftab” com “Vulture Prince” logo abaixo.
Vulture Prince, o terceiro álbum da carreira de Aftab, a vê retornar a suas raízes e lidar com a dor da perda de pessoas importantes (Foto: New Amsterdam Records)

Frederico Tapia

Nascida em 1985 na cidade de Riyadh, na Arábia Saudita, mas criada em Lahore, no atual Paquistão, e atualmente radicada em Nova York, nos Estados Unidos, Arooj Aftab começou a ser conhecida durante os anos 2000 com rendições de músicas de outros artistas, como por exemplo Hallelujah, de Leonard Cohen. Ela se formou no Berklee College of Music em Produção Musical, Engenharia de Som e Composição de Jazz após se mudar para os EUA em 2005. Em 2021, ela lançou seu terceiro álbum de estúdio, Vulture Prince, e conquistou duas indicações ao Grammy 2022, tornando-se a primeira mulher paquistanesa a ser indicada à premiação estadunidense. Uma das indicações é como Artista Revelação, uma das principais categorias do prêmio, e a outra como Melhor Performance de Música Global por Mohabbat.

Aftab dedicou o álbum a Maher, seu irmão mais novo que faleceu durante o processo criativo do disco. Inicialmente, ela estava buscando trabalhar com uma sonoridade mais ousada e alegre antes desta tragédia pessoal. Mas no processo de produção do novo álbum, ela agora estava lidando com a morte de seu irmão, e por isso, ela retornou à sonoridade de seu primeiro disco, Bird Under Water (2015). Ela foi em busca dos Ghazals (poemas islâmicos, muito comuns no subcontinente indiano) em Urdu e da Poesia Sufi para criar uma declaração sobre a sua jornada, da dor e do luto até a aceitação. Ela disse que o álbum é sobre revisitar lugares que um dia ela chamou de seus, “lugares que não necessariamente ainda existem”. É sobre pessoas, amizades, e alguns relacionamentos que acabaram de forma abrupta, e como lidar com eles.

Como dito na página do disco no bandcamp, os dois álbuns se comunicam como se fossem dois capítulos. Além dos dois nomes serem ligados a aves, também há o ritual Parse, chamado de Dakhma ou Torre do Silêncio, que acontece quando deixavam os entes queridos após morrer para serem consumidos por abutres, como gesto para retomar o ciclo da vida. Aftab disse que ficou pensando neste ritual, o quão belo e ao mesmo tempo sombrio é, além do papel que os abutres têm no ciclo da vida.

No fundo há uma parede de madeira, no canto superior esquerdo da imagem tem uma planta, com Aftab de cabelos lisos e Badi Assad de cabelos ondulados sentadas de forma próxima, com um violão no colo de Assad. Há outro violão atrás de Assad, na direita da imagem, e dois microfones, um na parte esquerda da imagem e outro na direita da imagem.
Arooj Aftab colaborou com a virtuosa violonista e compositora brasileira Badi Assad na canção Diya Hai (Foto: Arooj Aftab/Instagram)

Em Vulture Prince, ela infunde os Ghazals, o Thumri (estilo de canto usual no norte da India) e o Qawwali (uma forma de canto devocional islâmico, mais comum no subcontinente indiano) com o minimalismo de Terry Riley (um dos pioneiros na escola do minimalismo musical). Ela abre mão de alguns instrumentos tradicionais, como o Sitar e o Bansuri. Além disso, das sete músicas do álbum, cinco não contam com qualquer tipo de percussão, com as exceções sendo Last Night e Mohabbat. Por isso, Aftab usa sua voz como um instrumento, sendo este provavelmente o mais proeminente ao longo dos 46 minutos que o disco percorre. 

A maior parte das canções são releituras. Por exemplo, Suroor, que ficou conhecida na voz do grande Nusrat Fateh Ali Khan, um dos maiores cantores de Qawwali e considerado por alguns como o maior cantor Sufi nas línguas Punjabi e Urdu, chamado muitas vezes comoShahenshah-e-Qawwali (“O rei dos reis do Qawwali”). Outro exemplo é Last Night, a única música cantada em inglês do disco. A canção se trata de um poema de Rumi, poeta persa do século XIII que, apesar de ser um dos mais vendidos no Ocidente, tem seu contexto religioso retirado de seu trabalho na maior parte das traduções.

O disco é iniciado com Baghon Main, uma regravação de um Ghazal que Arooj já havia interpretado em seu primeiro álbum, mas que aqui assume uma influência sonicamente minimalista. O álbum segue com Diya Hai, que foi a última música que ela cantou para seu irmão em vida, e que conta com a participação da brasileira Badi Assad. A canção é uma interpretação de um poema de Mirza Ghalib, no qual Aftab demonstra sua voz etérea junto ao virtuosismo de Assad no violão. Nos versos finais, ela canta sua sensação de estar sem palavras e isso diz muito sobre o próprio disco. Afinal, o álbum, de forma até proposital, talvez não diga tanto de forma sônica, e também talvez, nem precise dizer mais do que isso.

Seguindo, a próxima canção é Inayaat, um Ghazal de Sudarshan Fakir que pode ser traduzido como “Gentileza”, e a própria cantora traduziu a letra na página da música no site Genius. O único momento em que ela não canta em sua língua nativa é em Last Night, canção que evoca repetidamente a imagem da Lua, que na poesia Sufi, tende a vir de um lugar tanto de esclarecimento quanto de transcendência. Ao citar que seu amado é como a Lua, Aftab encontra uma forma para os seus sentimentos nesta situação específica. Aqui, assim como em outros momentos do disco, ela repete suas palavras várias vezes, e a cada vez que isso acontece, a artista encontra uma forma de fazer os versos chegarem até nós de uma forma diferente.

No fundo há uma parede azul e Arooj Aftab, uma mulher paquistanesa de cabelo preto e olhos castanhos está com seu cotovelo apoiado em uma mesa de madeira, e apoiando o rosto em sua mão esquerda que possui um anel do dedo anelar, no lado direito da imagem. Ela veste um pulôver azul escuro com uma camiseta preta.
Como processo do luto, Aftab decidiu retornar às suas raízes (Foto: Tonje Thilesen/For The Times)

Mohabbat, um dos singles e que gerou uma de suas indicações ao Grammy, é um poema de Hafeez Hoshiarpuri escrito na década de 1920. Existem outras versões feitas por cantores paquistaneses, como Mehdi Hassan, mas Aftab toma outra direção em sua interpretação. Sem o uso do harmônio ou da tabla, ela alonga as palavras, evocando o sentimento de tristeza da separação. 

A tristeza disso é igual a tristeza de todo o mundo”, ela canta, evocando algo que poderia ter vindo de Abida Parveen. Apesar de nunca chegar em um clímax propriamente dito, a canção cria camadas e camadas de sentimentos como algo que queima lentamente, e segundo as palavras da própria artista, ela quer que sua música traga sentimentos da poesia Sufi, como calma, paz, paciência, simplicidade, e depois anseio, tristeza, procura, unidade, e compreensão.

A penúltima canção, Saans Lo, é um poema composto por Annie Ali Khan, amiga da cantora que faleceu em 2018, no mesmo ano que o irmão de Aftab. Aqui, a canção nos aconselha a respirar e olhar pra frente antes de chegar ao encerramento do disco, que acontece com Suroor. A música nasce de outro clássico Qawwali, mas dessa vez, ela o leva para a direção do jazz e sintetiza a ideia de Vulture Prince:  mesmo retornando às suas origens, Arooj Aftab demonstra toda sua personalidade e sua identidade criativa, no fim das contas trazendo algo único.

Aftab disse que esse é um álbum sobre revisitar, reviver lugares e relacionamentos que não necessariamente existem. Indubitavelmente, é um álbum extremamente pessoal, mas ao mesmo tempo, ele ultrapassa barreiras, sendo elas tanto linguísticas quanto musicais, e consegue passar sua mensagem de forma brilhante. Desta forma, Vulture Prince traz um pouco de ar fresco ao Grammy, extremamente dominados pelos mesmos gêneros e sempre cantados em inglês.

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