Os batimentos da mudança movem Corações Gentis

Vencedor na seção Generation 14plus do Festival Internacional de Cinema de Berlim, Corações Gentis encanta as telas brasileiras na Perspectiva Internacional da 46ª Mostra (Foto: Accattone Films)

Enzo Caramori

É possível que um sentimento de surpresa arrebate um espectador desavisado ao descobrir que Corações Gentis (2022), representante belga na Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é um documentário. Essa surpresa, no entanto, está longe de afastar o gênero do longa-metragem dirigido pela dupla de cineastas Olivia Rochette e Gerard-Jan Claes. Nesse híbrido de sensibilidades ficcionais e documentais, o casal de jovens adultos Billie Meeussen e Lucas Roefmans são retratados à beira de transformações em suas aspirações pessoais, com uma emoção vertiginosa e delicada — um típico frio na barriga adolescente — acerca das expectativas sobre o futuro e suas incertezas.

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O deserto coletivo assola Paloma

Cena do filme Paloma, mostra a protagonista, uma mulher negra, sorrindo com um véu branco na cabeça.
Entre grandes títulos nacionais, Paloma faz parte da rica seleção da 46ª Mostra de São Paulo, na seção Mostra Brasil (Foto: Pandora Filmes)

Vitor Evangelista

Paloma trabalha colhendo mamões em uma plantação, faz bico de cabeleireira, namora com Zé e, junto dele, cria a pequena Jenifer no interior do Pernambuco. Ela é espirituosa, bondosa e amada por todos da cidadezinha, e no fundo, tem um desejo próximo ao coração: se casar na igreja, vestida de noiva, com buquê e chuva de arroz. Mas, quando enfim toma coragem e chega ao padre com o singelo pedido, ouve um sonoro ‘não’. Por ser uma mulher trans, o sonho de Paloma não pode ser concretizado. 

Na trama, presente na seção Mostra Brasil da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e inspirada por acontecimentos reais, quem interpreta Paloma é a grandiosa Kika Sena. Arte-educadora, diretora teatral, poeta e performer, graduada em Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB) e mestranda em Teoria em Prática das Artes Cênicas pela Universidade Federal do Acre, Sena é pesquisadora nas áreas de gênero, sexualidade, raça e classe, e autora dos livros Marítima (2016) e Periférica (2017) e da zine Subterrânea (2019).

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Estante do Persona – Setembro de 2022

Em Setembro, o Clube do Livro do Persona completou sua 12ª leitura sob os cuidados da Pediatra, de Andréa del Fuego (Foto: Companhia das Letras/Arte: Nathália Mendes/Texto de abertura: Raquel Dutra)

“Ainda é tempo de morrer amanhã, que será o ontem de depois de amanhã, se eu então continuar vivo.” 

– Javier Marías

O primeiro ano do Clube do Livro está chegando: em Setembro, completamos nossa 12ª edição, preparados para encerrar um ciclo que nos fez próximos da Literatura como nunca antes havia acontecido. Iniciando as comemorações desse marco tão especial, trouxemos A Pediatra, de Andréa del Fuego, para deixar suas impressões sobre o tão saudável projeto caçula do Persona.

O que encontramos a partir daí, no entanto, foi um procedimento nada convencional. A obra da autora paulistana se concentra em Cecília, uma pediatra que é o exato oposto do estereótipo que lhe é associado. Longe da imagem maternal e paciente evocada pela sua profissão, a personagem é munida de uma frieza incorrigível, o que a faz, nem tão surpreendentemente assim, uma médica muito bem-sucedida. 

Com essa narrativa peculiar, as palavras concisas de Andréa del Fuego permeiam um humor perspicaz no cenário da classe média alta de São Paulo. Pelo fluxo de consciência de Cecília e suas peripécias cirurgicamente calculadas, a autora não precisa de mais de 160 páginas para propor reflexões nada pretensiosas sobre papéis de gênero, relacionamentos familiares e desigualdades sociais.

Lançado em 2021, A Pediatra é somente a mais recente demonstração dos méritos da mestra em Filosofia laureada com o prêmio José Saramago em 2011. Na ocasião, a obra tratava-se apenas de seu primeiro romance: Os Malaquias, drama familiar que carrega a referência do Nobel de Literatura português, tido como a principal referência da autora. Enquanto a nova edição do livro integra novamente o título ao catálogo da Companhia das Letras, o último romance de Andréa del Fuego faz seu nome integrar novamente a lista do Prêmio Jabuti, Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Oceanos.

Mas nem só de comemorações são feitos os inícios e fins de ciclos. No 9º mês do ano, também houve a despedida de Javier Marías, escritor, tradutor e editor espanhol considerado um dos contemporâneos mais importantes da língua. Com apenas 20 anos, iniciou seus trabalhos literários com Os domínios do lobo (1971), se consolidando na Literatura da Espanha com os romances O homem sentimental (1986) e Todas as almas (1989). O cenário internacional veio em 1992, quando Coração tão branco rompeu todas as barreiras ao vender 1 milhão de exemplares e ser traduzido para mais de 40 idiomas.

Além de se destacar entre os romances, cujo hall de sucessos ainda engloba Os enamoramentos (2011) e a trilogia – considerada sua obra-prima – Seu rosto amanhã (2002-2007), o autor também era conhecido pelos seus contos e artigos, sempre alinhados pela sua perspectiva de formação e experiência como docente em Filosofia e Letras, primeiro pela Universidade Complutense de Madrid, depois na Universidade de Oxford. No dia 11 de Setembro, Javier Marías faleceu aos 70 anos, em decorrência de uma pneumonia. Sua extensa produção literária angariou respeito e admiração pela crítica e pelos leitores, sendo um eterno favorito ao Nobel de Literatura – mas isso é assunto para o mês que vem.

Entre as idas e vindas do meio, parte fundamental do nosso radar afiado desde Outubro de 2021, introduzimos mais um Estante do Persona. Na companhia de outros trabalhos literários louváveis que a nossa Editoria selecionou para as indicações do mês, finalizamos o primeiro ano do Clube do Livro de olho no que vai terminar de definir a Literatura em 2022.

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Status positivo: Perlimps se emancipa em viagem sensorial

Cena do filme animado Perlimps. A cena mostra uma raposa e um urso crianças no escuro. A raposa laranja segura uma lanterna em direção ao seu rosto, enquanto o urso branco e preto tem luzes saindo de seus olhos, iluminando sua frente.
Exibido no Festival de Cinema de Animação de Annecy, Perlimps integra a Mostra Brasil e marca o retorno de Alê Abreu à Mostra de SP, em sua 46ª edição (Foto: Vitrine Filmes)

Vitor Evangelista

Na floresta colorida que preenche com entusiasmo a tela de Perlimps, uma das animações mais aguardadas da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, dois agentes secretos duelam por um bem em comum. Do Reino do Sol, Claé (Lorenzo Tarantelli) é uma raposa que insiste em se identificar como lobo, enquanto Bruô (Giulia Benite), nascida no Reino da Lua, representa uma miscelânia selvagem, assumindo a forma de um urso com rabo de leão. À primeira vista inimigos, os bichinhos entendem que apenas com a união será possível derrotar o inimigo invisível.

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O Estranho Caso de Jacky Caillou tropeça ao tentar espetacularizar o comum

Cena do filme O Estranho Caso de Jacky Caillou. Da esquerda para a direita na imagem, Loïc segura uma ovelha para Gisèle e Jacky Caillou cuidarem. A fotografia captura os três por inteiro. Loïc é um menino branco de cabelos e olhos claros, ele veste um colete azul sobre uma camiseta amarela e uma calça jeans. A ovelha tem a pelagem curta. Gisèle é uma mulher branca de cabelos e olhos claros, ela veste uma manta vermelha. Jacky é um homem branco de cabelos e olhos claros, ele veste uma jaqueta azul e uma calça cinza. Ao fundo, o cenário é um celeiro durante o dia.
O Estranho Caso de Jacky Caillou foi disponibilizado gratuitamente na plataforma do Sesc Digital durante a 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, como parte da seção Competição Novos Diretores (Foto: Best Friend Forever)

Nathalia Tetzner

Jacky Caillou é o protagonista ingênuo e pouco convincente do primeiro longa-metragem do diretor Lucas Delangle, O Estranho Caso de Jacky Caillou. Ambientado nos Alpes, a obra participa da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo na seção Competição Novos Diretores e, anteriormente, foi exibido no Festival de Cannes 2022. O filme francês, parte do rol nada seleto de títulos que se iniciam com “O Estranho Caso”, baseia a sua narrativa no poder de cura popular e na explicação do fantástico pela natureza, fato que o afasta do extraordinário e somente o aproxima do comum. 

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Na obra de Roberto Bolaño, a memória é o nosso Amuleto

Com tradução de Eduardo Brandão, Amuleto, de Roberto Bolaño, foi a leitura do Clube do Livro do Persona em Agosto de 2022 (Foto: Companhia das Letras/Arte: Nathália Mendes)

Bruno Andrade

“Soube que tinha de resistir. De modo que me sentei nos ladrilhos do banheiro das mulheres e aproveitei os últimos raios de luz para ler mais três poemas de Pedro Garfias, depois fechei o livro, fechei os olhos e disse para mim: Auxilio Lacouture, cidadã do Uruguai, latino-americana, poeta e viajante, resista” (pág. 29).

À primeira vista, Roberto Bolaño é lembrado por dois romances – possivelmente os mais importantes da Literatura na América Latina no final do século XX e início do novo milênio: Os detetives selvagens (1998) e 2666 (2003). O último – uma espécie de testamento do autor chileno, lançado postumamente e com quase mil páginas – desfez a ideia de que o apocalipse ocorrerá sob sirenes e explosões; na verdade, o fim do mundo já começou, e é tão silencioso quanto os assassinatos constantes e sigilosos dos jovens latino-americanos. Por outro lado, com seu romance de 1998, Bolaño deu vida à aura libertária das revoltas deste lado da América, sob uma perspectiva idealizada que, não obstante, é ela mesma rechaçada no livro. Ainda assim, é em Amuleto (1999), lançado entre uma obra e outra, que o autor concentra magistralmente seus temas principais: a poesia, a política e a violência.

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Um Homem: dores e masculinidade em pauta

Cena do filme Um Homem. No centro da imagem, temos o ator Dylan Felipe Ramirez olhando sua reflexão em um espelho. Dylan é um jovem pardo, de cabelos pretos escuros, tatuagens perto das orelhas e olhos castanhos. Ele está vestindo uma jaqueta azul escura com detalhes em branco, em cima de uma camiseta também azul escura. O espelho é revestido de madeira marrom, provavelmente embutido a um guarda roupa da mesma cor. O cenário é uma parede esverdeada e desgastada. A cena acontece durante o dia.
Um Homem é um dos participantes da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo na Competição Novos Diretores (Foto: Cercamon)

Nathan Nunes

A premissa de Um Homem , que participa da Competição Novos Diretores da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, é simples. Carlos (Dylan Felipe Ramiréz) quer comemorar o Natal junto de sua família, da qual ele é separado por viver em um abrigo para jovens no centro de Bogotá, na Colômbia. O problema é que cada um dos três integrantes está em um lugar diferente: sua mãe está distante e sua irmã trabalha como prostituta para pagar uma dívida que nem mesmo o jovem tem condições de quitar. Assim, acompanhamos o protagonista em seu dia a dia de angústia e sofrimento, forçado a se enquadrar em um perfil de masculinidade com o qual ele claramente não se identifica. 

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Roda de conversa na Unesp Bauru amplifica vozes femininas da Literatura local

Promovido pela Biblioteca do campus e pelo Cômite de Ação Cultural, o encontro trouxe cinco escritoras bauruenses para compartilhar suas experiências

O evento fez parte do Festival da Palavra, idealizado para marcar o mês em que se celebra o Dia Nacional do Livro; da esquerda para a direita estão Renata Machado, Julia Bac, Patricia Lima, Anália Souza e Ariane Souza, as convidadas da mesa (Foto e Arte: Bruno Andrade)

Nathalia Tetzner

Na primeira quarta-feira (05) do mês de Outubro, o Persona acompanhou uma roda de conversa com escritoras locais na sua sede, a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), promovida pela Biblioteca do campus de Bauru. Com caneta e bloco de papel nas mãos, o projeto traz os destaques da cobertura, que contou com as convidadas Anália Souza, Ariane Souza, Julia Bac e Renata Machado, com mediação de Patrícia Lima.

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A ode à memória dos Anos do Super 8: Annie Ernaux se lembra

Presente na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo na seção Perspectiva Internacional, Os Anos do Super 8 foi exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes (Foto: Les Films Pelleas)

Vitória Gomez

Um dos nomes mais falados da Arte no momento, Annie Ernaux chegou à 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. A escritora francesa recentemente venceu o Prêmio Nobel de Literatura e, ainda em 2022, estende sua atuação à indústria cinematográfica com Os Anos do Super 8, presente na seção Perspectiva Internacional do festival. Ao lado de David Ernaux-Briot, seu filho e co-diretor, Ernaux torna as fitas caseiras da família, registradas em uma câmera Super 8, um documentário maior do que sua vida, se debruçando sobre a essência da memória e da juventude.

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Flux Gourmet é um delicioso banquete difícil de digerir

Cena do filme Flux Gourmet. Nela, vemos os três integrantes que compõem o coletivo artístico-culinário. Ao centro temos o personagem Billy interpretado por Asa Butterfield, um jovem branco de cabelos pretos com uma grande franja. Ele usa uma jaqueta jeans, camiseta vinho e calça jeans. Sua cabeça está arqueada e sua boca levemente aberta. Mais atrás, dos lados direito e esquerdo, temos duas mulheres, a da direita, loira e a da esquerda, de cabelo castanho cor de mel. As duas estão de costas, fazem movimentos com as mãos na altura do rosto e vestem uma espécie de vestido fúnebre na cor preta. Ao fundo, há uma parede que reflete uma luz azul.
O filme chega em terras brasileiras através da seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Bankside Films)

Guilherme Veiga 

Cozinhar, definitivamente, é uma Arte. Mesmo não estando inclusa entre as sete, a gastronomia sabe emular todas as sensações que as outras conseguem, às vezes de forma mais impactante e convincente que as demais. Seja pelo conforto e ternura de uma comida feita pela mãe, seja pela explosão sensorial do prato principal feito em um restaurante três estrelas Michelin ou até mesmo pela agonia que é experimentar algum ingrediente exótico. São essas experiências que Flux Gourmet, co-produção entre Reino Unido, Estados Unidos e Hungria, em cartaz na Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, e que estreou no Festival de Berlim, busca instigar.

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