Guilherme Veiga
Feche as cortinas, esconda as cabeças de alho e cubra os crucifixos. Os vampiros mais excêntricos de Staten Island pedem permissão para entrar em sua casa mais uma vez. Depois de uma grande aceitação da crítica, que rendeu oito indicações ao Emmy no segundo ano, a série retorna para dar continuidade à trama, além de expandir o universo criado em 2014 por Taika Waititi e Jemaine Clement com o filme homônimo.
Em um período de indecisão quanto ao gênero de comédia na TV com os fins de grandes produções como Modern Family e The Good Place, e de queridinhas da crítica que vão de Fleabag à Schitt’s Creek, WWDITS figura na forma de um respiro para o segmento, ao lado de novas surpresas dessa entressafra como, por exemplo, Ted Lasso. Sendo uma das poucas que ainda funciona no formato de falso-documentário, a obra prova que tal escopo ainda está estabelecido no mercado, além de se consolidar como uma das melhores comédias da atualidade.
A ideia surgiu em 2005, mesmo ano da versão americana de The Office, que revolucionou o formato. Porém, as brilhantes mentes de Taika e Jemaine — que atuam como produtores, roteiristas e diretores do programa — vão além. Se o dia a dia da Dunder Mifflin arranca risos de um ambiente monótono que até então nunca poderia ser imaginado, o documentário vampiresco tira sarro de todo um braço literário que se firmou ao longo de décadas e que era difícil de pensar algo fora da curva. Para isso, Taika conta com seu dom de produzir sátiras de universos intocáveis (o que lhe rendeu o Oscar de Roteiro Adaptado por Jojo Rabbit), fazendo com que cada obra sua seja esse ponto fora da curva. E, com as duas versões de What We Do in the Shadows, isso não é diferente.
Diferente do que diz a cativante música de abertura, os vampiros vêm para o terceiro ano mais vivos do que nunca e um pouco mais inseridos nesse mundo. Os anos anteriores trabalharam muito bem o choque de realidade entre os dois mundos. Agora, eles já têm certa familiaridade com tal realidade, e a piada, muitas vezes, está no estranhamento que nos causa ao ver eles realizando atividades banais, incluindo malhar, pedir para o amigo flertar no seu lugar ou apostar em uma máquina caça-níquel temática de The Big Bang Theory.
A trama começa pouco depois dos eventos do final da segunda temporada. Guillermo (Harvey Guillén) aceita sua sina após o massacre do conselho vampírico e tenta se emplacar como guarda costas dos vampiros. Já Nandor, o Implacável (Kayvan Novak), e Nadja (Natasia Demetriou), no melhor estilo de “se não tem tu, vai tu mesmo”, sobram na diretoria do burocrático conselho, enquanto Lazlo (Matt Berry) liga o foda-se para a liturgia do cargo e vai viver uma amizade inesperada com o Colin Robinson de Mark Proksch (The Office, Better Call Saul). O terceiro ano ainda conta com a participação secundária de Kristen Schaal (The Last Man On Earth, BoJack Horseman) como A Guia que veio de brinde com o conselho, além da volta de Doug Jones (A Forma da Água, O Labirinto do Fauno) como O Barão (ou o que restou dele).
Definitivamente mais pop, a série opta por expandir o cosmo do qual caçoa, ampliando ainda mais o universo vampiresco e inserindo outras criaturas fantasiosas na trama, zoando com lobisomens, gárgulas e sereias. Além dessa expansão, a produção busca satirizar — e ao mesmo tempo homenagear — o audiovisual como um todo. Os 10 episódios são uma metralhadora de referências, que vão desde um episódio inteiro baseado em Onze Homens e um Segredo até cenas em homenagem a obra-mor do imaginário vampírico, vulgo a do jogo de baseball em Crepúsculo.
Mas não pense que a série se trata de apenas um amálgama de easter eggs, como foram os besteiróis mais duvidosos dos anos 2000. Pelo contrário, e isso é mérito total do roteiro. Tudo é muito bem encaixado para que as piadas sejam mais afiadas que uma estaca de madeira. E isso nos dá momentos ímpares, dentre eles a menção direta à The Office vinda pontualmente por um ex-ator do show ou até mesmo uma piada sobre peido que se encaixa totalmente com o arco de Colin Robinson (dá vontade né, Adam Sandler?).
Para que o roteiro funcione, é necessário uma entrega por parte do elenco. E, nessa temporada, os cinco personagens principais estão em seu auge. Todos abraçaram totalmente o ridículo que a premissa propõe. Por isso, What We Do in the Shadows ousou em alterar o status quo que vinha dando certo nos anos anteriores e bagunçar totalmente a dinâmica do grupo. Gizmo está mais independente em seu arco de personagem. O sexualmente pomposo e extravagante casal Nadja e Lazlo (a.k.a. Jackie Daytona) está um pouco afastado: ela cuida dos trâmites do conselho vampírico ao lado de Nandor, enquanto ele beira o bromance ao ajudar Colin Robinson na sua busca por origens.
A série, que ficou famosa por suas participações especiais — Tilda Swinton na primeira temporada e Mark Hammil na segunda são algumas das caras conhecidas —, dessa vez, economiza em nomes. Dentre eles, Donal Logue no papel de… Donal Logue, que se apaixonou pela mitologia dos vampiros após atuar em Blade, e David Cross (Arrested Development), que está irreconhecível como Dominicas, o Terrível. Mas, sinceramente, a sinergia dos atores principais e o cuidado com o roteiro fazem com que as participações sejam apenas uma cereja em um delicioso bolo molhado com sangue.
O formato do streaming definitivamente ajudou What We Do in the Shadows. Enquanto as sitcoms da Era de Ouro da comédia na TV precisavam rebolar para entregar algo na média de 22 episódios, a leva de 10 capítulos auxilia muito o programa. Com isso, a história é mais fácil de ser desenvolvida, e um dos trunfos da série — que é o contato deles com a vida mundana — não se desgasta, além das tramas secundárias convergirem facilmente a um ponto comum da principal.
Outro fator que a beneficia é o tempo em que vivemos. Gravada em Toronto durante a pandemia de covid-19, a produção decidiu não abordá-la em seu terceiro ano (diferente da temporada final de Brooklyn Nine-Nine por exemplo). Por mais anacrônico que isso soe, tal decisão se prova acertada. Além de funcionar como uma perfeita válvula de escape, mostrar personagens que estão se acostumando com nosso mundo, ao mesmo tempo em que nós mesmos estamos nos adaptando novamente a essa realidade, ressalta a inteligência e o timing da escrita, e catapulta a identificação que estamos nutrindo com seres tão diferentes.
Em um universo grande de sitcoms, é fácil ficar na mediocridade e se acomodar no segmento. E é exatamente esse o diferencial de What We Do in the Shadows: ela faz questão de bagunçar a ordem das coisas. O ridículo é o que rege o programa. Ela não está nem um pouco interessada em se levar a sério, até porque as únicas pessoas que a levam a sério são os próprios vampiros. Isso dá margem para que se possa brincar com absolutamente tudo, o que pode ser visto, por exemplo, no último episódio, que gira em torno de um clichê das séries de comédia: as despedidas. Os mais desavisados, que não tem conhecimento da já encomendada quarta temporada, passam metade dele achando que aquilo é um decente e precoce series finale.
A trama é a que talvez mais se aproxima da loucura de Community. Porém, o show de Dan Harmon não negava seu caráter totalmente experimental e caótico para a época, enquanto aqui há mais noção do que está sendo feito, e mais sutileza na forma de como é feito. A série do FX apresenta mais consciência ao homenagear o audiovisual, ao mesmo tempo que brinca com ele. Provavelmente, Abed adoraria What We Do in the Shadows.
As sitcoms que a inspiraram andaram para que WWDITS pudesse voar, é fato. Porém, a cada ano do show, é mais evidente que ela definitivamente — e ironicamente — merece seu lugar ao sol. Não por reinventar a comédia ou por revolucionar a TV, mas por não ter vergonha de ser ela mesma: ridícula, inteligente e atraente do jeito que é. Mas, em um momento de escassez do gênero, é notável sua contribuição ao mostrar que, assim como o rock de Elvis, o segmento não morreu, no máximo ele está escondido no porão de algum vampiro.