Vikings: uma carta de amor para a mitologia nórdica

Lucas Lombardi

Na manhã de 8 de junho de 793, longos navios desembarcaram na costa do mosteiro da ilha de Lindisfarne, localizado no território onde hoje é a Inglaterra. Sem forma alguma de defesa, os monges do mosteiro foram massacrados. Os autores desse ato brutal então velejaram de volta para casa, carregando consigo tudo de valor que haviam encontrado: metais preciosos, arte e escravos. Eram guerreiros pagãos, normandos, oriundos da Escandinávia. Esse evento ecoaria por toda a Inglaterra, dando início à Era Viking.

O canal History não era conhecido por séries dramáticas. Até 2013, certamente a série mais assistida era a constantemente reprisada Alienígenas do Passado. Até que o inesperado aconteceu e Michael Hirst, criador da série The Tudors, estreou no canal com Vikings, inspirada nas sagas do guerreiro Ragnar Lothbrok, ou Ragnar Calças-Peludas.

Ragnar não é exatamente uma figura histórica. Enquanto seus filhos, Bjorn Flanco de Ferro e Ivar, O Sem-Ossos, definitivamente existiram, não há evidência alguma de que ele tenha realmente existido fora das sagas, histórias mitológicas originárias da Islândia Medieval que detalhavam feitos de grandes heróis. A genialidade da série, porém, não vem da precisão histórica, e, sim, da forma como ela mistura fatos históricos com lendas mitológicas. Logo na primeira cena, vemos Ragnar e seu irmão, Rollo, triunfantes depois de uma batalha. Ragnar observa o horizonte e tem uma visão de Odin, o principal deus da mitologia nórdica. Passagens como essa são abundantes na série, nunca deixando claro se a aparição de figuras mitológicas são apenas devaneios das personagens ou não, dando um certo charme e mantendo um realismo para a série.

Nada de Chris Hemsworth ou Anthony Hopkins, esse sim é um deus nórdico de raiz

A cultura escandinava é fielmente retratada. Chega de elmos chifrudos! Os vikings nunca sequer utilizaram esse tipo de proteção, afinal, o peso dos chifres mais atrapalharia que protegeria de ataques. Esse mito teria surgido em 1820, com publicação do livro A Saga de Frithiof, compilação ilustrada de lendas escandinavas. O mito ganhou mais força posteriormente com a série de óperas O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner e, mais recentemente, com os filmes de Hollywood.  Vale lembrar também que nem todos os escandinavos eram vikings, visto que não se trata de um povo, mas de uma minoria de guerreiros que velejavam para saquear outros territórios.

Na série, em vez do rei das sagas, Ragnar é um fazendeiro viking em Kattegat, território governado pelo Jarl Haraldson. Essa mudança é justamente feita para que os costumes vikings sejam retratados do ponto de vista de um fazendeiro comum. Vemos os ritos de passagem dos meninos escandinavos com Bjorn e a decisão do Jarl em velejar ao leste, contrariando os desejos de Ragnar que, após descobrir um método de não se perder no mar utilizando pedras de cristal com um andarilho, cria a ambição de ir ao oeste em busca de uma famosa terra cheia de riquezas. Cenas como essas são ótimas de se assistir, saciando a curiosidade de quem deseja saber mais sobre a política, cultura e religião escandinavas da época.  Sem contar as cenas de batalhas, que ilustram a famosa tática da parede de escudos.

Mas nem só de cenas expositivas se faz uma boa série. As personagens e as atuações convencem, sendo não só condizentes com a época, mas também ótimos instrumentos para mover a narrativa. Ragnar, interpretado por Travis Fimmel, se mostra um protagonista complexo, inicialmente seguindo o arquétipo da jornada do herói e eventualmente evoluindo para um personagem sempre imprevisível a cada temporada. Com outros personagens, conhecemos demais aspectos acerca dos vikings. Rollo, por exemplo, outra figura histórica muito bem interpretada por Clive Standen, mas erroneamente retratada na série como irmão de Ragnar, possui um arco que se estende por quatro temporadas até chegar ao seu destino histórico como duque da Normandia e antepassado distante da família real britânica.

Outra personagem interessante é Lagertha, interpretada pela atriz e artista marcial Katheryn Winnick, figura mitológica e esposa de Ragnar, uma skjaldmö ou donzela escudeira. É através dela que a série mostra o papel da mulher na Era Viking. Ao contrário da cultura europeia, dominada pelo cristianismo, as mulheres pagãs tinham muito mais espaço na sociedade escandinava. As donzelas escudeiras lutavam junto aos guerreiros homens. Embora elas fossem até então consideradas mitológicas, sendo mais comuns nas sagas, recentemente pesquisadores das universidades de Uppsala e de Estocolmo, na Suécia, descobriram uma ossada viking pertencente a uma mulher.

Lagertha e seu escudo

O tema de religião também é constante na série, principalmente com os personagens Athelstan (George Blagden), um monge cristão que retorna do mosteiro de Lindisfarne com Ragnar, e Floki, interpretado pelo excelente Gustaf Skarsgård, um viking pagão fanático pelos deuses nórdicos que rouba a cena. Não há pregação religiosa, reforçando uma crença como a única verdadeira, mas, sim, um questionamento entre os próprios personagens. Athelstan, principalmente, começa a questionar sua fé ao vivenciar a cultura pagã, criando um embate entre as duas crenças, notando suas diferenças e semelhanças. O que o cristianismo condena, o paganismo celebra. Tudo isso é apresentado com bom gosto, realmente criando paralelos e questionamentos para a audiência.

Já os britânicos, que tem que lidar com as constantes invasões vikings, são representados pelo Rei Egberto (Linus Roache), de Wessex. Suas cenas focam principalmente na relação dos britânicos com os escandinavos e também na intriga política. Líder ambicioso, Egberto é o contraponto de Ragnar. A dupla, inclusive, divide cenas dignas de qualquer Mindinho e Varys, de Game of Thrones.

Da esquerda para direita: Hvitserk, Bjorn Flanco de Ferro, Ivar o Sem-Ossos, Ragnar, Ubbe e Sigurd Cobra-no-Olho

Para os amantes das sagas escandinavas, não é segredo que a série eventualmente se desviaria de Ragnar para focar em seus filhos, tão famosos quanto ele próprio. O principal deles é Ivar, interpretado em sua versão adulta por Alex Høgh Andersen, que fica conhecido como o Sem-Ossos por ter nascido com uma rara imperfeição nos ossos das pernas que o impede de andar. Mesmo assim, Ivar é o personagem mais “casca grossa” da série, implacável na batalha e exímio estrategista. Sua deficiência cria uma dinâmica muito interessante, pois torna o personagem não só único, como também memorável; um ótimo sucessor para Ragnar.

A cereja no do bolo é, sem dúvida, a trilha sonora. Einar Selvik, músico norueguês do grupo Wardruna, é um dos compositores da série junto a Trevor Morris. As músicas são completamente inspiradas pela cultura nórdica, mesclando vocais com instrumentos nórdicos tradicionais e até mesmo sons naturais, como rochas, pássaros, água e galhos. Vale muito a pena conferir.

Apesar de não possuir a grandeza e ambição de séries como Game of Thrones, e da rápida narrativa desacelerar a partir da quarta temporada devido ao número de episódios terem dobrado, Vikings compensa com drama, intriga, ação, cenas brutais de batalha e uma empolgante narrativa, cheia de momentos e personagens memoráveis que mergulham o espectador em uma viagem na história de uma cultura fascinante.  A quinta temporada, que estreia no próximo dia 29, promete um foco ainda maior nos filhos de Ragnar, que seguem fiéis às antigas sagas nórdicas.

Deixe uma resposta