Tonight’s The Night: uma carta de overdose

Gabriel Rodrigues de Mello

No começo do mês, o músico canadense Neil Young disponibilizou toda sua discografia em um serviço de streaming exclusivo, temporariamente gratuito. O site Neil Young Archives conta com mais de 50 álbuns de estúdio, concertos, bootlegs, tudo para ser ouvido em alta qualidade. O veterano, famoso por suas exigências, sempre rejeitando a qualidade do formato mp3, afirma: “não é que o formato digital seja ruim ou inferior, é que a forma como ele está sendo usado não faz jus à arte.”. Desse modo, o site funciona como uma biblioteca de discos virtual para quem quiser ouvir as gravações em sua forma mais pura.

Diante de um repertório tão grande, fica difícil julgar qual álbum seria ideal para ouvir em alta qualidade. Talvez, a melhor escolha não fosse um dos seus discos mais agradáveis, como After the Gold Rush (1970) ou Harvest (1972), já que a sua polidez deixa pouco espaço para experienciar algo que não fora planejado. Isso me levou a escolher um de seus álbuns mais antagônicos, o tão agressivo quanto frágil: Tonight’s the Night.

O álbum compõe a chamada Trilogia da Sujeira (Time Fades Away, On the Beach, Tonight’s the Night), que tem esse nome por englobar uma época em que Neil estava assombrado e devastado pelas mortes por overdose de heroína de seus companheiros. Danny Whitten, compositor, guitarrista e vocalista da banda Crazy Horse – trabalhava com Neil desde 1969 e batalhava com o vício.  Bruce Berry, roadie profissional do músico desde os tempos de Crosby, Stills, Nash and Young. Ambos morreram entre o fim de 1972 e o início do ano seguinte. E isso tudo transparece na atmosfera do álbum intensamente.

A morte de Whitten atingiu Neil como uma pedra. A dupla se dava bem tanto fora, como amigos, quanto dentro do meio musical. O argumento incontestável que sustenta isso é o dueto de guitarras em “Down by the River”, em que a química entre as cordas sujas de Neil e os riffs limpos de Danny cria uma narrativa própria, compondo um dos solos mais marcantes da carreira do músico.

Em outubro de 1972, Neil convidou o guitarrista para participar de uma turnê. O músico mal conseguia acompanhar o resto da banda quando Young lhe deu 50 dólares e pediu para ele voltar para Los Angeles. Em entrevista, conta que recebeu a má notícia no dia seguinte e se sentiu responsável.

Bruce Berry era conhecido por ser carismático e sempre alegre. No entanto, quando voltou da Inglaterra depois de fazer uma turnê com Stephen Stills, o roadie estava mudado. Danny Whitten havia introduzido-o a heroína, e não demorou muito para encontrar o mesmo destino que o músico, no começo de 1973. Fica clara a importância de Berry para Young ao ser citado diretamente na música homônima que abre o álbum.

Bruce Berry was a working man
He used to load that Econoline van.
A sparkle was in his eye
But his life was in his hands.

Alguns meses depois, Neil se reuniu no estúdio com a banda The Santa Monica Flyers e gravou 12 faixas. O contraste entre essas e a música mais gentil encontrada nos álbuns anteriores assustou a Reprise Records: o disco só foi lançado dois anos depois das gravações, em 1975.

O susto é justificável.  A obra reflete uma tristeza superficialmente feia. Um exemplo é a comparação entre “Tired Eyes” (Tonight’s the Night) e “The Needle and the Damage Done” (Harvest). As duas canções tratam de temas parecidos como o abuso de drogas, porém destoam em tom, revelando a mudança do olhar de Young.  Na canção de 1972, Neil canta com calma e delicadeza, enquanto o violão conduz a letra – que funciona como uma mensagem. Por outro lado, na faixa de Tonight’s the Night, o canadense entrega sua voz de maneira inconstante e fraquejada, de certa forma, soando mais natural e cru do que um canto ensaiado: “uma visão turva de um assassinato por causa de drogas em um cânion em Los Angeles. Fora de tom, mas ainda afinado”, o músico explica.

Nesse álbum, os vocais do músico canadense se relacionam com a instrumentação de modo parecido com a interdependência entre a voz quebrada e a guitarra metálica nas canções antigas de Hank Williams. Em Tonight’s the Night, esses conjuntos de elementos tentam se acompanhar, embora qualquer tentativa de apoio se torne parasitismo. Cada instrumento reveza e peleja para sustentar a estrutura musical do country e do folk, encontrando no rock a eletricidade para se manter minimamente alerta.

Neil Young na turnê de Time Fades Away, em 1973

Enquanto Williams, trinta e poucos anos antes, se cercava de álcool e drogas farmacêuticas para suportar sua dor nas costas e o sofrimento caipira americano; Neil tenta entender seu auto sufrágio, originado da morte de seus companheiros, se transbordando de drogas e álcool. Atualmente, o músico brinca, descrevendo Tonight’s the Night como “o álbum mais líquido que já fez”.

A partir disso, a letargia induzida pela tragédia – que paira como uma névoa sobre todas as faixas – dá uma certa liberdade aos instrumentos que seus álbuns mais lúcidos não se permitam ter. A exceção é a “Come on Baby Let’s Go Downtown”, que foi gravada em 1970 em um concerto no Filmore East. A banda que acompanhava Neil era a Crazy Horse, com Danny Whitten ainda vivo e nos vocais principais. Apesar de ter um clima mais agitado que o resto do álbum, a letra descreve um encontro com um traficante e a paranoia impulsionada pelas drogas. Além de que, obviamente, a presença proeminente de Whitten já declara a música por si só.

Danny Whitten

Um tema comum no álbum é o romance. Embora o amor tenha feito parte desde o começo de sua carreira,  agora toma um significado diferente. Faixas como “Speakin’ Out”, que referencia a sua namorada atriz – Carrie Snodgress -, trata do amor sob um olhar desamparado, que o procura como oportunidade de fuga; assim como “Mellow my Mind”, que usa a gaita para representar a anestesia do relacionamento íntimo descrita nas letras.

A ressaca do sucesso feito pelos seus álbuns de estúdio anteriores também afeta o músico. Em “Borrowed Tune”, o músico se perde ao procurar sua própria identidade; assim, o título da canção se dá pela melodia que Neil copiou dos Rolling Stones, já que “não é capaz de compor as suas, por estar muito chapado”. De modo parecido, “Albuquerque” retrata a vontade do músico canadense de fugir da fama, carregado pelo acompanhamento instrumental mais bem resolvido do álbum: a guitarra de Neil toma a frente da parede musical antagonizando o pedal steel de Ben Keith, minimalista e passageiro, tudo isso coberto pela chuva fraca de notas vindas do piano de Nils Lofgren.

I’ll find somewhere where they don’t care who I am

Felizmente, Neil consegue driblar seus questionamentos existenciais com “Lookout Joe” – a única música gravada com a banda The Stray Gators. Ao contrário do resto do álbum, essa canção transfere o foco a um personagem fictício. Isso faz com que o músico possa escrever para outra pessoa, no caso, “Joe” representa os soldados americanos que voltam do Vietnam, encontrando um sentimento de inadequação nos EUA semelhante àquele que Neil sentia na época. Essa ideia traz um tom de sobriedade raro no álbum; por meio de vocais mais energéticos e guitarras agressivas.

Capa alternativa de Tonight’s the Night

Sendo Tonight’s the Night sobre vida, morte e perda, a honestidade artística de Neil Young o impede de criar algo completamente encenado e focado. Muito pelo contrário, a espontaneidade toma a essência de sua música de maneira em que a distorção temática também prejudica a estrutura musical, abalando ritmo, harmonia e melodia. Além disso, não só o músico, mas toda sua banda de apoio estava passando pelo luto. O resultado é um álbum dolorosamente sincero, despretensioso e com uma enorme carga emocional; que jamais romantiza, ou condena o estilo de vida retratado, apenas, o narra com olhos sujos.

 

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