Nietzsche recomenda Carmen

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Eli Vagner F. Rodrigues

A ordenação hierárquica das artes é controversa na história da estética. Para Hegel a Poesia seria a Música plástica, uma arte suprema que pode expressar o pensamento por imagens. Para Schopenhauer a música seria a mais elevada das artes, expressão direta da Vontade, a essência do mundo dos fenômenos. Maurice Nédoncelle considera o problema da Hierarquia das Artes uma questão estéril para nossos dias.  Para Nédoncele, não devemos impor às Artes uma ordem de precedência, pois todas teriam valor igual, apenas são julgadas de perspectivas diferentes. O que é inegável, mesmo com todas as polêmicas classificações é que a música sempre ocupou lugar de destaque como forma de expressão artística. Na Alemanha do século XIX, a filosofia se debruçou com especial atenção sobre as possibilidades estéticas da música. Neste panorama de autores, ideias e disputas as análises de Friedrich Nietzsche da música da época são, a meu ver, essenciais para a compreensão de alguns problemas estéticos característicos do final do século XIX e que influenciaram autores fundamentais para a crítica do século XX, nomes como Adorno, Horkheimer e Foucault. Nietzsche se arriscou não somente na “crítica” mas também esboçou alguns exercícios de composição, hoje disponíveis até por streaming. Um dos pontos centrais de sua obra crítica foram suas considerações sobre a música de Richard Wagner.

Nietzsche chegou a escrever um ensaio intitulado “Nietzsche contra Wagner” em seu último ano de lucidez. Neste texto Nietzsche critica as concepções de Wagner, demonstrando desapontamento e frustração sobre as escolhas pessoais do compositor, não vê com bons olhos a sua conversão ao cristianismo, para Nietzsche um claro sinal de fraqueza e decadência cultural. Nietzsche chega a afirmar que se considera um antípoda de Wagner e nega seu schopenhaurianismo cristão. Para Nietzsche “Wagner condescendeu passo a passo para tudo o que eu desprezo – até para o antissemitismo”. Após as diatribes e disputas com Wagner e o distanciamento estético dos ideais ascéticos de Parsifal e de Tristão e Isolda, Nietzsche buscava na música um exemplo de obra de arte que representaria o oposto da exaltação, para Niezsche decadente, do ascetismo e da conciliação da filosofia com o cristianismo e com a moral da compaixão de Schopenhauer.

Para Nietzsche, haveria uma oposição fundamental entre concepções artísticas que teriam como objetivo a suposta elevação do homem através da negação do corpo, da sexualidade e da sensualidade, ou seja, dos apetites mundanos. Oposta a esta concepção estariam as obras de arte que pregariam uma afirmação da vida, em tudo que ela representa, o trágico e o fatalismo, a vontade e a sensualidade, o apetite e a violência. Esta perspectiva seria, em linhas gerais, a base da chamada concepção trágica da vida e da arte. Wagner, para Nietzsche, teria se afastado desta visão em favor de um ascetismo decadente.

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Mas o que a ópera Carmen tem a ver com esta polêmica estética germânica? (Carmen, ópera em quatro atos do compositor francês Georges Bizet, com libreto de Henri Meilhac e Ludovic Halévy, baseado na novela homônima de Prosper Mérimée. Estreou em 1875, no Opéra-Comique de Paris.) A ópera de Bizet, que figura entre as mais populares e mais executadas em todo o mundo, representou para Nietzsche um bálsamo de vitalidade e sensualidade e em um ambiente artístico que apontava rumos estéticos sombrios, decadentes, exatamente pelo elemento de negação que trazia em seu âmago. A tragédia de Carmen, exuberante na música, extremamente expressiva na sensualidade e vivacidade dos personagens teria trazido para a música da época um alento de realidade trágica pela afetividade amoral da personagem que enaltece a alegria e a embriaguez.

A obra de Georges Bizet apresenta um mundo de andarilhos, ciganos, um ambiente de tavernas e praças onde as preocupações estão mais relacionadas com os apetites do que com as crises morais da humanidade. Carmen representaria a liberdade de acolher e cumprir o seu próprio destino, com base no fluxo de seus instintos e não em idealismos abstratos. Esta opção a colocaria na vertigem do livre e perigoso jogo dos afetos, longe da segurança do controle, do ideal de perfeição e retidão. Alguns comentadores da obra de Nietzsche afirmam que esta oposição entre um ideal e perfeição de um lado e uma instintividade e irracionalidade (impulso) de outro estão relacionados, grosso modo, com as concepções de “apolíneo” e “dionisíaco”, conceitos desenvolvidos por Nietzsche na obra “O nascimento da tragédia” para caracterizar duas possibilidades de expressão estética.

A opção ético-estética que caracteriza a personagem Carmen a transformou em uma das mais representativas imagens de sedução e engano da idade moderna. A figura da cigana com sua sensualidade meridional é hoje, para a cultura ocidental, como um arquétipo do binômio amor-tragédia. A via que leva a este descaminho do erro, da paixão, passa necessariamente pelo descontrole, pela livre vazão dos instintos, exatamente o contrário do ascetismo que seria um exercício de controle do corpo. A opção de Carmen passa necessariamente pela liberdade instintiva. A passagem abaixo, do II ato da ópera representa bem esta opção:

Segue-nos através dos campos,

vem conosco para a montanha,

segue-nos e irás acostumar-te

quando vires, ali,

como é bela a vida errante;

por país o universo,

e por lei, a tua vontade

E sobretudo, o mais embriagador:

A liberdade ! A liberdade !

O céu aberto, a vida errante,

por país todo o universo,

por lei a vontade,

e sobretudo, o mais embriagador:

A liberdade, a liberdade !

O apelo universal desta opção de Carmen não é nada abstrata, por isso a compreensão do enredo é imediato, fácil. Nada é complexo em Carmen. O que Nietzsche vê na obra e que fundamenta sua admiração por Bizet não é algo que necessita ser explicado com grandes abstrações. Os personagens não são heróis míticos, o ambiente é a vida como ela é para qualquer indivíduo. A trama se baseia nos conflitos internos que cada indivíduo que precisa lidar com seu corpo, suas relações sociais e seu destino enfrenta em sua vida. Quem é dotado de uma esfera instintiva e forçosamente investe no jogo social dos afetos, quem vive mais perto da vida e mais longe dos ideais ascéticos, entende com clareza o sentido de Carmen já no primeiro ato. Nesse sentido a ópera Carmen pode ser considerada de fundamental importância para romper com o preconceito muito comum com relação à cultura musical operística. Carmen pode ser uma grande entrada para o universo do conhecimento da cultura musical europeia do século XIX. A popularidade da obra, a facilidade da compreensão da trama e a obviedade visceral da verdade vivida pelos personagens, abre, para aqueles que ainda apresentam, por vários motivos, alguma resistência ao modelo estético-musical operístico, uma oportunidade de contemplação e fruição raras. Em termos musicais propriamente ditos a música de Carmen, segundo Osvaldo Colarusso em “Escândalo moral: a conturbada estreia da ópera Carmen de Georges Bizet”: “tem um frescor em termos de melodia e harmonia que a colocam entre as grandes obras musicais do século XIX. Seu tecido harmônico chamou até a atenção do compositor Arnold Schoenberg, que cita alguns trechos da ópera em seu livro “Funções estruturais da harmonia”. Bizet já tinha demonstrado o seu incrível talento desde sua Sinfonia em Dó maior, escrita aos 17 anos até sua ópera “Os pescadores de pérolas”. Mas Carmen supera, de longe, qualquer expectativa.”

Assistir Carmen, hoje, obviamente, se tornou mais fácil, se não há a possibilidade de ir ao teatro, pode-se contar com excelentes versões gravadas em vídeo e disponíveis em várias mídias. Uma boa opção é a gravação da Wienner Staatsoper (que hoje oferece transmissão direta (live) em streaming de sua programação) disponível no youtube. Uma boa experiência para a compreensão dos aspectos que apontamos em linhas gerais é assistir a versão com legendas (o libreto da ópera foi originalmente escrito em francês). Para quem quiser uma versão em HD existe excelente opção (legendas em alemão):

 

Por que dar crédito à Nietzsche?

Mas por que dar crédito às ideias de Nietzsche sobre estética em tempos de internet, arte contemporânea, multimídia, pós-moderno? A meu ver, dar crédito a Nietzsche neste contexto não representa propriamente um anacronismo estético. Uma das ideias desenvolvidas por Nietzsche neste horizonte conceitual é a figura do filisteu da cultura. Nietzsche articula problemas filosóficos e estéticos com profundidade e aponta um traço característico da cultura ocidental que ainda hoje se faz presente, a concepção de decadência cultural da Europa. A massificação da cultura e a consequente perda de uma unidade de estilo teria sido gerada pela atuação dos “filisteus da cultura”, uma figura que se utilizaria da arte e da força criadora da sociedade para a realização de fins econômicos, mercantis, vulgares e degradantes. A figura é facilmente reconhecida como inspiração na crítica de Adorno e Horkheimer à indústria cultural. Sendo o detentor do poder econômico o “filisteu da cultura” insere o seu padrão estético distorcido nas tendências artísticas em voga.

Hoje toda a cultura estaria comprometida com o filisteísmo e não é somente na cultura de massa que ele se revela. Nietzsche via algo que ainda podemos ver em nossa sociedade. “A todo o sistema de educação superior na Alemanha falta hoje o principal: o fim e os meios para o fim. Esqueceu-se que a educação, a cultura, é o fim – e não o Império –, e que para tal fim é necessário o educador – e não o professor ginasial e os eruditos da universidade”. (Crepúsculo dos Ídolos)

Ivo da Silva Júnior no artigo “Nietzsche, filósofo da cultura” explica este aspecto:

“Mas o que é cultura para o filósofo? Por cultura ele entende a busca por uma fusão harmoniosa do físico, do psíquico e do intelectual no conjunto da vida, pela plenitude num mesmo homem da elevação espiritual, do refinamento emocional e da perfeição mental e moral. Considera que essa totalidade harmoniosa é para poucos, não podendo ser universalizada. Posição, sem sombra de dúvida, aristocrática. Somente o educador, e não o “professor ginasial” ou o “erudito da universidade”, pode formar este homem pleno. Mas na Alemanha falta esse educador (“os meios”) e falta a percepção da necessidade da cultura (“o fim”). Falta essa que é preenchida por uma “falsa” cultura, a filisteia, cujo fim é o Estado. E o que é a cultura filisteia? Nietzsche a entende como sendo o ensino geral e profissionalizante para todos, a cultura jornalística e a opinião pública, todo modo de vida que se coloca a serviço do Estado, em detrimento de uma plena formação pessoal. Posições estas, grosso modo, dos capitalistas e dos socialistas, desses modernos que defendem o progresso econômico ou o social.”

A verdade da arte, para Nietzsche, estaria na espontaneidade de obras que se opõem ao filisteísmo, ao estado e à escola tradicional. Neste sentido, a ópera Carmen, com sua impetuosidade “dionisíaca” representaria um ponto de fuga em relação à produção esteticamente comprometida com algo que não é a vida.

 

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