Para voar, basta Nezouh se decidir

Vencedor do Prêmio do Público da seção Horizontes Extra do Festival de Veneza, Nezouh participa da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo na seção Perspectiva Internacional (Foto: MK2 Films)

Vitória Gomez

Zeina, Mutaz e Hala são os últimos moradores de Damasco e têm horas para sair da cidade sitiada antes que esta seja invadida. A família composta por pai, mãe e filha permaneceu no local durante o cerco, mas encarou a decisão de deixar ou não seu lar quando um míssil abre buracos na moradia e os expõem ao mundo sem a segurança de suas quatro paredes. É através do olhar inocente e esperançoso de Zeina, de 14 anos, que acompanhamos o dilema do trio de Nezouh, que integra a seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

A obra é uma coprodução de Reino Unido, Síria, França e Catar, e tem a cidade síria de Damasco como palco. Cidade esta que já foi cenário para produções anteriores da diretora e roteirista Soudade Kaadan: seu longa-metragem de estreia, The Day I Lost my Shadow (2018), acompanha o percurso de uma mãe que sai do município, também sitiado, em busca de gás de cozinha para preparar uma refeição ao filho. Diferentemente do filme anterior, aqui a cineasta concede uma visão do mundo e da guerra sob a perspectiva da caçula da família, que se preocupa tanto com sua sobrevivência frente ao iminente ataque quanto com Amer (Nizar Alani), filho dos vizinhos e com quem ela cria uma amizade platônica.

The Day I Lost my Shadow venceu o Leão do Futuro de melhor longa de estreia no Festival de Veneza (Foto: MK2 Films)

Com escolhas de ângulos e movimentações de câmera incomuns para uma obra em um cenário de combate, Nezouh logo se revela peculiar. As panorâmicas da cidade destruída, pouco contrastadas na fotografia de Helene Louvart e Burrak Kanbir, se mesclam aos devaneios fantasiosos de mãe e filha, que cortam a ambientação. Acertadamente, o longa reconhece que de produções de guerra o Cinema já está cheio e, ao optar por uma nova abordagem. O filme pode não se arriscar o suficiente a ponto de atingir um surrealismo – mais do que bem-vindo e verdadeiramente inovador no tema – e, entre o retrato da realidade nua e crua e o mundo visto por detrás dos olhos espontâneos de uma adolescente puberal, escolhe postar-se em cima do muro.

Nezouh não carece de personalidade, mas de coragem. Tomando lugar majoritariamente em um apartamento e em questão de poucas noites, a obra não aproveita de seu roteiro quase teatral, responsabilidade também de Kaadan, para realizar um estudo de personagem, como poderia. Pelo contrário, Mutaz, o pai da família, é tão irritante e cabeça dura quanto o retrato de um homem machista poderia ser. Se recusando a sair da cidade sitiada e se tornar um “deslocado”, como os refugiados são chamados ao partirem de suas terras-natais, o personagem vivido por Samer al Masri se contenta em apresentar apenas uma camada: a contextualização dos motivos do pai é tão escassa e superficialmente interpretada que até a reta final do filme, quando uma mudança no movimento do patriarca indica seu arrependimento, parece pouco crível e forçada a favor de um final feliz.

Já as figuras vividas pelas atrizes Hala Zein e Kinda Alloush – Zeina e Hala respectivamente -, também saem pouco da obviedade, mas ganham um senso crítico e uma independência admirável. Zeina, principalmente, encarna a curiosidade adolescente de uma jovem que, com nenhuma autonomia, explora as poucas migalhas de liberdade a partir do buraco que o míssil abre em seu teto. Em uma amizade platônica com Amer, a garota passa a olhar para o que o mundo fora de suas quatro paredes guarda. 

Termo empregado pejorativamente por Mutaz, Nezouh significa deslocado (Foto: MK2 Films)

Assim como Zeina, a corajosa matriarca mantém a mente aberta, se impõe ao marido inflexível e é compreensiva quanto aos devaneios da filha. Hala até ousa a sonhar junto dela, enxergando o mar além dos muros arrasados de Damasco, o oceano através da janela da cozinha e um passarinho fazendo lar em seu próprio, destruído. Aqui, mais uma vez, Nezouh peca por não se decidir: a fantasia aparece como forma de escape do duro cotidiano das mulheres da família, mas os poucos momentos aquém da realidade são tão raros que causam um estranhamento, ao invés de encantarem pela inventividade. 

Abraçando a imaginação e a aura jovial e esperançosa mesmo em meio aos destroços de uma guerra, a obra poderia triunfar por rumos inesperados. Ao jogar seguro, o terreno em cima do muro acaba se tornando tão seguro quanto a residência de Mutaz, Zeina e Hala: uma hora ou outra, o trio tem de tomar uma decisão; a inércia não basta. Na reta final, mesmo que a família escolha seu caminho, Nezouh ainda não se decide. 

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