Um mergulho no retorno cinematográfico do Radiohead

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Radiohead em 2016 (Foto: Alex Lake)

Nilo Vieira

Desde que o Radiohead, no último natal, enfim interrompeu o longo hiato silencioso de quase cinco anos pelo qual a banda atravessava, algo além das canções chamou a atenção: a relação delas com a sétima arte. “Spectre” era uma música rejeitada para a trilha do último filme da franquia James Bond, “Burn the Witch” veio ilustrada com uma animação que remete ao filme O Homem De Palha e, por fim, “Daydreaming” ganhou um belo videoclipe dirigido pelo diretor Paul Thomas Anderson. Todavia, quando o aguardado novo álbum da banda enfim foi lançado no último dia 8, um outro filme, bem distante do sucesso dos supracitados, veio à tona.

Lançado em 1968, The Swimmer (no Brasil, ganhou a bizarra “tradução” de Enigma de uma Vida) pode tanto ser encarado como uma narrativa banal como uma trajetória complexa, de alto nível metafórico. A história é no mínimo estranha: um sujeito chamado Ned Merrill, trajado apenas com uma sunga, aparece repentinamente na casa de um casal de amigos. Após meia dúzia de devaneios, Merrill percebe que todas as residências no caminho de sua casa possuem piscinas, e então resolve “nadar” de volta para seu lar. A cada mergulho dado, Ned se depara com conhecidos que o confrontam, relembrando partes de seu passado – o qual o próprio parece não se recordar.

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“Quando você falar sobre The Swimmer, irá falar sobre si mesmo?”

Observando bem, o ouvinte mais familiarizado irá perceber que A Moon Shaped Pool, o nono disco do Radiohead, funciona de forma parecida. O quinteto britânico mergulha em diferentes partes de sua trajetória: estão ali os arranjos intimistas e orgânicos de In Rainbows (2007), as texturas eletrônicas de Kid A (2000) e Amnesiac (2001), as partes recortadas de Ok Computer (1997) e traços minimalistas de The King of Limbs (2011). Fora da discografia do grupo, “Ful Stop” olha diretamente para Third (2008), último disco do trio Portishead. Dada a direção mais monocromática dos projetos mais recentes dos integrantes, essas facetas mais vivas de antigamente já eram tidas como encerradas pelos fãs mais desesperançosos.

Musicalmente, esse retorno ao passado se dá de forma direta, assim como em The Swimmer – várias canções que compõem A Moon Shaped Pool já haviam sido executadas ao vivo, algumas há mais de duas décadas atrás. Mas é pelo conteúdo lírico que a relação do disco com o filme se revela de maneira mais profunda. Ano passado, o líder Thom Yorke se divorciou da artista Rachel Owen, com quem estava junto há 23 anos. Mesmo que o próprio tenha dito à imprensa que o processo foi amigável, a melancolia derivada desse episódio é escancarada no LP. O auge desse sentimento se dá na finalíssima “True Love Waits” (o amor verdadeiro espera) que, segundo o produtor Nigel Godrich, ainda não havia sido lançada por Yorke “não ter encontrado um contexto” para ela. “Eu não estou vivendo, apenas passando o tempo”, canta Thom Yorke. Essa sensação de perda atinge seu clímax ao final da música, com um verso simples, mas cortante: “Apenas não vá embora”.

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Rumos confusos: Ned Merrill “nada” em uma piscina vazia

De modo similar, o personagem vivido por Burt Lancaster em The Swimmer também se mostra completamente desnorteado com o sentimento da ausência. Diferente de Thom Yorke, porém, Ned Merrill se recusa a aceitar a realidade amarga, e por vezes parece agir como Dom Quixote, combatendo acusações de pessoas com a ideia fixa de seu delírio – a de que tudo continua bem, e suas filhas estão em casa jogando tênis. O clipe de “Daydreaming”, porém, reata as semelhanças entre as duas obras: assim como a jornada de Merrill através de piscinas, o caminho de Yorke por entre portas revela uma busca por algo que não se manifesta de maneira clara na mente, e que por vezes parece inatingível em seus trilhos confusos. A devastação emocional, a falta de sentido após deixar (ou ser deixado) por alguém, a retomada da vida cotidiana, a exposição à pessoas tóxicas: estão todas ali, tanto no filme quanto no disco – interpretadas sob prismas diferentes, mas com a devida profundidade que o tema pede.

Os mais críticos poderão discordar, alegando que The Swimmer não é isento de pieguismos e que a opção do Radiohead em reutilizar composições antigas destoa do espírito desafiador de outrora do grupo, e que A Moon Shaped Pool é apenas mais do mesmo. Tais opiniões não são isentas de razão, mas ignoram o contexto temporal de tais trabalhos: para sua época, o modo como o surrealismo é colocado em The Swimmer é bastante inovador – pois, como Belchior cantaria alguns anos mais tarde, mostrava um delírio de coisas reais, destoando da psicodelia que era a vibe do momento -, e além da verve sentimental, tece críticas sobre o american way of life que são pertinentes até hoje.

Enquanto isso, o nono registro em estúdio do Radiohead acerta principalmente por reapresentar um disco com características distintas dos cinco membros; a paixão por eletrônicos de Thom Yorke ainda é peça central no som do grupo, mas ganharam força os arranjos de cordas de Jonny Greenwood (coincidentemente, as cordas também são elemento chave na trilha de The Swimmer), e estão presentes novamente a cozinha marcante composta por baixo e bateria (com direito até à sambinha em “Present Tense”!) e as camadas de guitarras, deixadas em segundo plano no disco antecessor – que mais soava como a continuação do projeto solo de Yorke. Se o produto final não é revolucionário, é variado e refinado o suficiente para ser relevante: a banda ainda consegue emocionar, suscitar reflexões e ainda permanecer acessível ao grande público, o que passa longe de ser uma tarefa fácil.

É curioso notar que In Rainbows, na época descrito por Yorke como sua versão de canções de sedução, tem partes que mais parecem remeter a términos de relacionamentos como A Moon Shaped Pool, ao passo em que este às vezes apresenta tons calorosos que se encaixam perfeitamente na proposta do que parece ser seu antecessor conceitual. Já em The Swimmer, o final parece mais representar como tudo ali começou, enquanto o início repentino estabelece mais hipóteses do que certezas. São trabalhos artísticos que optam por não concluir o raciocínio nos moldes convencionais: demandam revisões atentas, e a cada nova audição/assistida revelam novos detalhes e possibilidades de interpretação – típico de grandes obras, a maior semelhança compartilhada entre The Swimmer e A Moon Shaped Pool.

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A piscina em que Ned Merrill não nadou: a capa do novo álbum do Radiohead

 

 

 

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