La Francisca, Uma Juventude Chilena e as variáveis do silêncio

Numa colaboração entre Chile, França e Bélgica, o filme traz silêncios cinzentos e jovens latino-americanos vibrantes para colocar pedofilia em foco na Competição Novos Diretores da 44ª Mostra de SP (Foto: Reprodução)

Raquel Dutra

Existe um problema sério em retratar atos desumanos explicitamente no cinema. Abordagens nessa direção revelam um caráter tão repugnante (que de fato, tais atos possuem) que a nossa resposta diante deles, na maior parte das vezes, é o distanciamento. Repelimos aquelas atrocidades da nossa realidade e esquecemos o local e a forma exata onde/como elas se concretizam, que infelizmente, é no ordinário. E quem concebeu La Francisca, Uma Juventude Chilena parece estar ciente disso. A coprodução francesa-chilena-belga é parte da seção Novos Diretores da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e usa um cenário comum para sussurrar observações necessária sobre pedofilia.

Francisca é a personagem principal desse retrato, personificando todos os significados possíveis que o termo pode ter sublimemente na pele de Javiera Gallardo. A jovem de 19 anos sonha em deixar a cidade pequena de Tocopilla, no norte do Chile, para conhecer o mundo e encontrar oportunidades melhores na capital do país, mas a realização desse desejo é impedida pelas muitas responsabilidades que ela desempenha dentro de casa. Entre expedientes noturnos no pequeno posto de gasolina que a família mantém e diurnos ajudando a mãe que trabalha como costureira, o principal compromisso de Francisca é com o seu irmão mais novo, Diego (Aatos Flores), que recentemente foi diagnosticado com autismo. Em decorrência do transtorno, o pequeno tem dificuldades para se comunicar e estabelecer laços com outras pessoas, confiando profunda e unicamente na irmã, que ainda tenta viver sua juventude sem deixar a família na mão.

Ela é tudo (Foto: Reprodução)

O cotidiano da casa é abalado depois que Diego começa a fazer aulas particulares com seu novo professor substituto, Fernando (Francisco Ossa), por intermédio de Francisca que, pensando no futuro do irmão, paga o serviço com suas economias, depois da recusa de seus pais para a educação especializada de Diego e do menosprezo que manifestam diante da sua preocupação com a (in)dependência dele. Aos poucos a jovem percebe uma mudança no comportamento do irmão, que ao contrário do que foi prometido pelo educador, está cada vez mais retraído e desmotivado. A partir disso, a dinâmica disfuncional da família também se revela cada vez mais profunda e os motivos da mudança no temperamento de Diego, que não verbaliza nenhuma palavra em todo o filme, nunca são tratados com atenção.

Sinalizando sutilmente através de sua direção e roteiro, o chileno Rodrigo Litorriaga mostra as raízes dos problemas nos detalhes. Às vezes mais implicitamente, com Diego olhando para o céu e fechando os olhos com cansaço depois que vê um bando de urubus voando sobre ele no céu, ou de forma mais explícita, como quando o menino sai do banheiro da escola vazia e logo atrás está o professor. Assim, La Francisca, Uma Juventude Chilena não desrespeita nem invade a imagem da criança. O talento mirim Aatos Flores entrega o sofrimento de Diego dolorosamente pelo olhar, desesperadamente pelo silêncio e violentamente pelos desenhos, linguagem que inclusive é a forma que o abusador encontra para se comunicar e estabelecer confiança com o menino (e quando a família toma consciência disso, já é tarde demais).

La Francisca, Uma Juventude Chilena é o primeiro longa-metragem do diretor (Foto: Reprodução)

A reviravolta da história acontece numa noite em que Francisca atende os conselhos da mãe, que diz para ela se preocupar menos, e sai para refrescar a cabeça. Depois de dias de incerteza, o filme nos rasga com seu repentino e fatal desfecho. Sem qualquer tempo pra nos prepararmos, La Francisca, Uma Juventude Chilena nos coloca emocionalmente ao lado das famílias que têm de lidar com as atrocidades que são cometidas com suas crianças, ensaiando uma dor que alguns de nós nunca saberemos como realmente é.

Depois desse momento construído de uma forma profundamente próxima, outros poucos detalhes sobre o menino são fornecidos de uma forma avassaladoramente impessoal, pelo radiojornal de Tocopilla. Enquanto isso, nossos olhos caminham pelo território acinzentado e empoeirado da cidade abalada pelos frequentes terremotos, contraste que a fotografia de Jean-Marc Ferrière cria com as imagens coloridas e vibrantes por onde antes enxergávamos os irmãos. 

Construindo um retrato que vai muito além do regional, o filme é humilde em se intitular (Foto: Reprodução)

La Francisca, Uma Juventude Chilena é mais uma obra sensível de 2020 que não recorre aos retratos explícitos para construir seu valor. Sua potência está em sua sutileza, que dá a cara exata que a pedofilia assume no nosso cotidiano, silenciosamente e, na maior parte das vezes, com seus sinais negligenciados pelos adultos e responsáveis. Sem colocar o protagonismo do filme em suas tragédias, Francisca ainda está ali, vivendo uma juventude tipicamente latino-americana que balanceia responsabilidades, contextos nacionais complicados e uma pulsão de vida latente – e aqui também entra o pequeno Diego e todo o futuro que o aguardava.

O silêncio no filme possui muitos valores diferentes, todos com enormes significados. No caso da abordagem sutil do tema, é um acerto em cheio; no caso da personagem de Diego, nos mostra danos irreparáveis; no caso da família negligente que não conversa sobre como melhorar a qualidade de vida do menino, é outro problema. Na forma como Francisca segue em frente, é paradoxalmente reconfortante. Mas quando retrata através dele a vista grossa que nossa sociedade insiste em praticar frente aos sinais que as crianças violentadas entregam, La Francisca, Uma Juventude Chilena transcende sua narrativa, denunciando o desrespeito que conservamos para com nossas ‘pessoas pequenas e gritando que todo cuidado é pouco.

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