Experiências com o Butô no Sesc Bauru revelam um mundo rítmico de interpretações múltiplas

Adriano Arrigo

“Os japoneses são, no mais alto grau, agressivos e amáveis, militaristas e estetas, insolentes e corteses, rígidos e maleáveis, submissos e rancorosos, leais e traiçoeiros, valentes e tímidos, conservadores e abertos aos novos costumes. Preocupam-se muito com o que os outros possam pensar de sua conduta, sendo também acometidos de sentimento de culpa quando os demais nada sabem do seu deslize.” Ruth Benedict em O Crisântemo e a Espada

A noite em que o Butô foi apresentado no Sesc Bauru não foi a primeira em que a cultura japonesa foi estranhada aos olhos ocidentais. A vala cultural que existe entre eles e nós está, a todo tempo, tentando ser decodificada na intenção de ser entrelaçada suficientemente bem para poder, enfim, serem conectadas. Porém, nossa cultura ocidental usa de ferramentas que muitas vezes parecem não traduzir os paradoxos que os orientais nos reservam.

A linguagem parece falhar e as perguntas brotam aos montes: afinal, o que é Butô?

“Se nem o próprio Kazuo ousou dizer o que é Butô, eu não sei dizer”, respondeu Key Sawao, dançarina e diretora, presente na noite do Sesc Bauru, no início de agosto de 2016, para o lançamento do livro Kazuo e Yoshito Ohno (Edições Sesc São Paulo, 2015, 284p.), do fotógrafo Emídio Luisi. Kazuo, a qual Key se refere, é Kazuo Ohno, uma das pessoas responsáveis a levar o Butô ao mundo.

Se quisermos tentar encaixá-lo dentro de um panorâmico artístico, Butô é uma expressão corporal difundida por artistas experimentais no pós-guerra japonês (Key ressalta que ele surgiu muitos anos antes dessa época). Em frouxas palavras, podemos tentar dizer que é uma dança, uma vanguarda que incorporou o zeitgeist na pele dos miseráveis artistas de sua época.

Kazuo Ohno, o homenageado da noite, era um desses artistas. Formado em dança contemporânea, seus caminhos foram tomando rumos artisticamente experimentais após conhecer o controverso coreografo Tatsumi Hijikata, ao final dos anos 50. Hijikata e Ohno começaram a formular as necessárias experiências com o Butô. Necessárias, pois o Japão passava por um momento frágil. A brecha que a bomba abriu permitiu que a cultura ocidental se infiltrasse no país colocando em cheque o papel do japonês em seu próprio território.

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Kazuo Ohno em performance nas ruas de Tóquio, em 1961. Ao fundo da imagem segurando cartazes está seu filho, Yoshito Ohno e o coreógrafo Tatsumi Hijikata (Crédito: Willian Klein)

A professora Christiane Greiner, do Departamento de Linguagens do Corpo  (PUC-SP), explica no posfácio do livro de Emídio esse momento peculiar do Japão: “a luta pela sobrevivência era ainda tão intensa que, de maneira geral, inibia os pensamentos críticos e as reflexões”. Assim, era necessário fazer algo pelo Japão, algo que transcendesse a apatia generalizada. Coube a Ohno e Hijikata fazerem suas contribuições artísticas através do Butô como forma de resistência a este estado de exceção em que o país deles vivia.

Em 1959 a performance Kinjiki (Cores proibidas) inaugurou o Butô. Contando com a presença de Ohno e Hijikata, foi recebido pela plateia como ‘perigoso e nada artístico’.

Já na noite do Sesc, Key Sawao mostrou em sua dança intitulada “Muda” claras referências ao Butô. Porém, ela não pintou a cara de branco e muito menos estava despida – como geralmente os artistas do Butô fazem – mas há claros temas em sua performance que lembram os temas clássicos do Butô, por exemplo, a falsa dualidade da vida e a morte.

Sob ruídos, Key abriu o círculo de conversa sobre o lançamento do livro de Emídio com uma performance intimista ligada ao movimento do seu próprio corpo. Sozinha e com extrema delicadeza, Key foi lentamente descrevendo uma circunferência próxima aos pouquíssimos participantes da roda. Algumas vezes ela era suave e rodava em seu próprio eixo, erguendo as mãos, abaixando as pernas, olhando para um lado e para outro; cada parte do seu corpo parecia ter uma função misteriosa numa cena hora sinistra, hora sublime.

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Key Sawao em movimento (Foto: Adriano Arrigo)

Dois jovens que saíam das quadras esportivas pararam por um tempo de longe, olharam e foram embora. Nada mudou. Parece que Key não precisava que nós estivéssemos ali em grande quantidade para que seu espetáculo solitário pudesse acontecer. Conta Emídio que, certa vez, Kazuo Ohno iniciou uma performance sozinho e sem plateia enfrente a um Haikai escrito em homenagem a uma companheira do grupo de dança de Takao Kusumo, o ser responsável por introduzir o Butô no Brasil.

Talvez seja coreografado antes, ou talvez não, mas tudo é espontâneo. Key deu aos poucos presentes da noite uma pequena amostra do que é isso, o Butô. Mesmo adaptado ao ocidente, mesmo aqui no Brasil, e aqui em Bauru, “Butô é isso, mutante”, disse Key.

Fragmento de “Muda”, por Key Sawao

Tão mutante é que não há um repertório a ser apresentado ao mundo, como explica professora Christiane Greiner em mais um comentário do livro. Portanto, uma afirmação em comum entre Key e a professora da PUC-SP é que Butô é metamorfose. Dessa forma, não é de se estranhar que Kazuo esteja sempre em processo de montagem nas fotos do livro. Assim, Emídio divide seu livro-homenagem em partes que sintetizam a obervação dessa transformação de Ohno ao entrar em palco.

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Kazuo Ohno se preparando para entrar no palco (Crédito: Emídio Luisi)

No livro, os capítulos “Percurso Solitário” e “Presença na Ausência” são dedicados ao filho de Kazuo Ohno, Yoshito Ohno. Ohno filho é hoje o responsável em levar as lições de Butô ao mundo após a morte do seu pai, em 2010. Porém, nas fotos do livro percebe-se que Yoshito Ohno adaptou o Butô ao seu próprio método (a tal da metamorfose), saindo da sombra do seu pai e transformando-o em suas apresentações em um boneco manipulável – literalmente.

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Yoshito Ohno e seu boneco, no caso, seu pai (Crédito Emídio Luisi)

Mas há algo notável em Kazuo Ohno que parece se fazer pouco presente em Yoshito Ohno: arepresentação do feminino. Mas por que essa ligação tão forte entre Kazuo e o feminino? “Esse fato tem origem no início da carreira de Kazuo que, mais ou menos com 60 anos, sua maior referência fora a bailarina espanhola Antonia Mercé”, diz Emídio. Complementarmente, Key conta sobre outras performances que ainda estão tão jovens quando Kazuo era quando também começou a sua carreira no Butô. 60 anos. Todos jovens, de acordo com Key.

Fragmento de “Dead Sea”, uma das mais famosas apresentações de Kazuo Ohno

Nos momentos finais, Emídio traz detalhes de sua relação com Kazuo Ohno. Emídio, que é formado em Matemática, conta que seu irmão, um artista plástico, ajudou-o na sua inserção ao mundo das Artes. Então, um dia lá estava ele, meio que sem querer – ou por algum motivo que ele prefere não chamar de coincidência – tendo o primeiro contato com Kazuo Ohno. Eles tiveram contato nas 3 vezes em que Kazuo esteve em turnê no Brasil, mas sem trocar uma palavra sequer. Mas “contato” não é bem a palavra que pode descrever precisamente o que eles tiveram, pois, para Emídio, havia uma cumplicidade entre os dois ao ponto de se encontrarem em um determinado lugar sem combinar anteriormente. O autor se emociona ao contar essa história que, para ele, não há nada místico, é somente a vida, “é explicar algo que não dá para explicar”.

Ao final da noite que, cronometradamente, durou menos de 60 minutos, talvez não tenha ficado claro o que é Butô entre outros pormenores dessa arte. Mas mais uma vez, um pedaço da ponte cultural foi construída ao modo oriental – sem necessidade de muitas palavras.

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