Vitor Evangelista
Bem recebido e premiado com o Grand Prix em Cannes, o finlandês Compartment Nº 6 passa pela 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo provando que, às vezes, a jornada é mais importante que o destino. De fato, o filme de Juho Kuosmanen, parte da Competição Novos Diretores, esbanja um nível técnico invejável para um cineasta “iniciante”, repleto de discussões interessantes e do clássico trunfo de não dizer, e sim mostrar.
Na história, acompanhamos uma jovem finlandesa (Seidi Haarla) que se distancia de um caso amoroso em Moscou, embarca em um trem e parte em busca de rochas especiais, que contam com inscrições muito antigas e enriquecedoras para seus trabalhos como historiadora. No vagão meia-dúzia, ela conhece um minerador russo (Yuriy Borisov), escroto e inconveniente, mas aos poucos amolecido pelo álcool no sangue e pela companheira de dormitório.
O roteiro de Andris Feldmanis, Livia Ulman e de Kuosmanen, baseado no livro de Rosa Liksom, investe no jogo de gato e rato que os protagonistas se metem, partindo de situações de extremo alerta (como a sequência ambientada no banheiro da locomotiva) até momentos mais sutis e divertidos (a mini-viagem que toma parte lá pelo segundo ato). Ao invés de colocar na boca dos personagens suas ações e seus passados, o brilhante texto nos mostra essas virtudes em ação, em gestos, olhares e reações.
Imagine o cruzamento ideal da ambientação da trilogia romântica de Richard Linklater com o niilismo mais classudo que o Cinema pensa em ostentar. Hytti nro 6 nos mantém na ponta dos pés, nunca revelando suas reais intenções. Devemos nos preocupar? Ou apenas aproveitar a viagem? São quase duas horas de uma jornada inquieta e extremamente viciante, o que causa um estranhamento quase que latente por baixa da primeira camada do voyeurismo.
Acompanhar tanto da intimidade dessas pessoas, dos vídeos caseiros da garota até o sono grosseiro do homem, pode ser intrusivo até demais. Porém, o diretor não força a barra ou penetra demais a psique atormentada e millennial dessa dupla do barulho. Respeitando limites e dando espaço para que seus objetos de estudo respirem, Kuosmanen é maquinista de um veículo que tem total ciência de onde quer ir. O destino vive no amanhã, ele sabe, e nós só temos o hoje.
O frio que congela a Rússia não é o bastante para que Vadim e Laura se prendam a quaisquer definições que os estereótipos de uma estudiosa e de um estúpido poderiam carregar. A escolha da Finlândia para a corrida do Oscar 2022 possui o fleur que costuma favorecer os grandes filmes internacionais: uma história “universal” recheada de pormenores culturais específicos. A receita do sucesso é a honestidade, e, capturado pela meticulosa montagem de Jussi Rautaniemi, pela gélida fotografia de J-P Passi e pelo rústico design de produção de Kari Kankaanpää, Compartment Nº 6 é brutalmente verdadeiro.