Arte e Arquitetura: um debate interminável

Luccas Pinheiro

Quando me ofereceram este espaço para comentar um pouco sobre a comparação entre arquitetura e arte, confesso que vi na minha frente uma grande dificuldade em dissertar. Esse não é um assunto simples. Durante todo esse tempo que estive na faculdade vejo meus professores debatendo e discordando sobre a questão.  Não só no âmbito acadêmico como no profissional: há um tempo o Archdaily (um dos maiores portais de arquitetura) postou uma matéria a respeito do assunto. Entendendo todos esses pontos, afirmo que este presente texto não passa de um artigo de opinião de um estudante de arquitetura, e assim deve ser lido e levado em consideração.

Quando revisitamos a história da arte, existem dois grandes mestres que não podemos deixar passar, Ernst Gombrich e Giulio Carlo Argan. E o que aprendemos com eles é que o trabalho de um artista, para ser considerado uma Obra de Arte deve conter mais do que simplesmente uma representação gráfica de alguma coisa. Por exemplo, Argan “busca o sentido da arte na sua história mais do que em faculdades inatas ou em princípios absolutos” (MAMMÌ, Lorenzo). Dessa maneira entendemos que a obra, para ser arte, precisa nos passar mensagens, sentimentos, lembranças e entendimentos que nem sempre são tão claros, e as vezes nos obriga a passar horas a observando e estudando para finalmente chegar a uma conclusão.

Tentarei ser didático, analisemos a seguinte obra do mestre francês Eugène Delacroix, “A Liberdade Guiando o Povo”:

 

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Eugène Delacroix – A Liberdade Guiando o Povo (1830)

 

Podemos analisar essa obra em vários aspectos, dois deles seriam o “aspecto da forma” e o “aspecto cultural” (intitulados por mim mesmo). Estudando o aspecto da forma, levaremos em consideração a habilidade técnica do pintor, a qualidade das cores de sua paleta (seguindo a linha renascentista), sua capacidade de representação das formas humanas (seguindo a linha clássica), e a perspicaz noção de luz e sombra (seguindo a linha barroca que começa a surgir). Vemos então que para adquirir essa habilidade técnica que nos permite entender e diferenciar o que é pessoa do que é arma, e o que está na frente do que está no fundo, o autor teve que revisitar diversas escolas antepassadas e somar esses aprendizados com as novas tendências que surgiam. Portanto, só de nos limitarmos aos aspectos técnicos dessa obra, já teremos um bom tempo de estudo e análise a serem gastos para um completo entendimento e, consequentemente, apreciação da arte. Porém, o aspecto da forma é visual, é concreto, é mais fácil de ser observado que o próximo.

O aspecto cultural nos revela todas as possíveis mensagens que a obra nos trás, muitas delas através de iconografias como, por exemplo, a própria liberdade. Para entendermos a obra devemos compreender o contexto histórico que a cerca. Estamos na Revolução Francesa, os revolucionários avançam guiados pela liberdade – representada com um misto de deusa grega e mulher do povo – que clama a vitória, carregando a bandeira tricolor da revolução e um mosquete. Aqui temos diversas mensagens a serem compreendidas, em primeiro lugar, eles avançam sobre os corpos dos seus companheiros no chão, que nos lembra que não há vitória sem sacrifícios e a maior honra que podemos dar àqueles que morreram pela nossa causa é continuar lutando e vencer por ela. Em seguida temos a iconografia da liberdade que avança de peito aberto, é preciso ter coragem para alcançar nossos objetivos. Como podemos ver, todas essas mensagens não estão óbvias ao espectador como estão os aspectos da forma.

Outro exemplo que podemos dar, já nos aproximando – finalmente – da arquitetura, é a Bauhaus. Esse exemplo é importante, pois nos demonstra outro tipo de objeto que não representa um quadro ou escultura que também podem ser considerado uma obra de arte, e explicarei o porquê.

 

Fall Catalog 2009
Josef Hartig – Jogo de Xadrez (1924)


Aqui temos um jogo de xadrez produzido pela Bauhaus e, novamente, podemos utilizar dos dois aspectos supracitados para analisar a obra, mas dessa vez de maneira mais sucinta para chegarmos logo ao ponto.  

Pelo aspecto da forma podemos observar a fantástica simplificação das peças de xadrez, que até então sempre foram enrustidos de ornamentos, curvas e detalhes. A Bauhaus acaba com isso, prefere a representação simples e minimalista, mas ainda de maneira que seja possível a diferenciação entre as peças. Pelo aspecto da história podemos entender o motivo dessa simplificação: a produção em massa do jogo. A Bauhaus é uma escola de arte completamente influenciada pela industrialização da segunda metade do século XIX, pela vanguarda modernista, e ascensão do comunismo na URSS. Dessa maneira a escola possuía ideologias socialistas, e tentava, através da industrialização e produção em massa, possibilitar que cultura, educação, habitação e infraestrutura fossem atribuídas para toda a população, especialmente a mais carente. Não é possível fazer uma produção em larga escada de peças ornamentadas, com muitos detalhes, por isso a simplificação da forma é importante. Esses são os motivos de podermos considerar essa obra da Bauhaus uma obra de arte.

Finalmente chegamos à arquitetura, e já começamos com a frase do vencedor do prêmio Pritzker, Álvaro Siza, quando questionado sobre a relação entre arquitetura e as demais artes: “Essa é uma pergunta a que não sei responder. Há muitas arquiteturas. […] A primeira coisa é que arquitetura é o que não é só construção. Há uma resposta material que pode ser eficaz desse ponto de vista, mas a arquitetura na minha perspectiva vai para lá do material. Há uma parte espiritual, se quiser, que não se satisfaz só com a construção. Nas cidades, construção vê-se muita. Arquitetura, não se vê tanta.”

Ora, quando Siza diz que arquitetura não só construção, ele se refere claramente o que chamamos de aspecto da forma, e quando fala que existe uma “parte espiritual” ele se refere ao aspecto cultural. Claro que podemos analisar uma obra arquitetônica somente pela construção (sistemas construtivos, materiais de construção, dimensões, etc.), mas ao fazer isso estaríamos perdendo outra parte da obra (aspecto cultural) que também possui um grande significado, e isso vale para todas as outras artes, como as citadas acima. Mas o que seria a “parte espiritual” da arquitetura? Para este autor, seria a relação que a obra tem com o entorno, a adesão das pessoas, a identidade que o edifício tem com seus usuários, o respeito ao sítio, o respeito à história, entre muitos outros.

Citarei como exemplo uma obra de um dos arquitetos que mais admiro: a Igreja de Iesu, de Rafael Moneo:

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Rafael Moneo – Iesu Church


A igreja é um ótimo exemplo para demonstrar aquilo que acredito. Podemos estudar esse edifício pela sua volumetria, pela construção, e pelos aspectos históricos e representativos que ele possui. Vou me ater somente aos aspectos históricos, pois em arquitetura, uma pesquisa rápida sobre a obra já nos apresenta os aspectos da forma.

Moneo é o tipo de arquiteto que eu respeito pois possui uma característica que para mim é fundamental, e nem todos os arquitetos possuem: o respeito ao sítio. É comum vermos obras de determinados arquitetos que “se repetem” em vários locais, isso não acontece com Rafael pois ele entende que cada lugar é único, e por isso o que foi feito antes, não necessariamente funcionará agora. Dessa maneira, o arquiteto espanhol tira seu partido do sítio, do lugar cuja obra será implantada, por isso vemos obras dele que são completamente diferentes umas das outras.

Detalhes da Iesu Church

No caso de Iesu, temos uma implantação completamente adequada ao terreno, possuindo diversos níveis. E temos também as mensagens que o arquiteto quer nos passar. A planta da igreja é em forma de cruz retorcida, pois, segundo o autor “pretende refletir as tensões do mundo de hoje”; No teto, quando se está na capela, observa-se a cruz contorcida e os raios de luz que o arquiteto possibilitou que entrasse, é como se ele quisesse dar a sensação de que as pessoas estivessem sendo abençoadas por estarem lá; O vitro da igreja possui os 12 meses do ano representados em números romanos, a planta da igreja, o sol e a lua em fases distintas, como se nos lembrássemos de considerar o tempo e os ciclos que a vida nos atribui.

Entendo então que arquitetura pode sim ser considerada uma arte, por possuir, assim como qualquer outra obra, os aspectos da forma e os aspectos históricos que compõem seu significado na vida das pessoas que frequentam o edifício ou passam por ele. Quando sentimos falta das casas das nossas avós, e dos momentos que aquele espaço nos proporcionou, estamos sentindo falta da arquitetura e dos sentimentos que ela nos transmitiu. Arquitetura é mais que a simples criação de edifícios. É a criação de espaços e lugares, que significarão algo para uma família, ou para uma cidade inteira, ou para um país inteiro (no caso do urbanismo). Portanto, devemos entender a arquitetura como um todo, assim como fazemos com as obras de arte, desde sua concepção até suas mensagens ocultas que precisam de tempo de vivência no espaço para serem perceptíveis.

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