Vitor Evangelista
Trabalhar o conceito da memória na Arte é uma artimanha e tanto. Para evocar o sentimento que viveu há cerca de duas décadas, é atrás das lembranças que vai a cineasta Charlotte Wells na confecção de Aftersun. A trama reflete um episódio experienciado pela irlandesa no fim dos anos noventa: uma viagem de férias à Turquia ao lado do pai, e seu apreço pela imagem como instrumento de ternura e captura do tempo.
A pequena Sophie (Frankie Corio) é a bússola do longa de estreia de Wells, parte da Competição Novos Diretores da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e eleito o Melhor Filme pelo Júri com o Troféu Bandeira Paulista. Ao lado do pai Calum (Paul Mescal), ela comemora o aniversário de 11 anos entre o quarto de hotel, a piscina, o oceano e as muitas caminhadas pelo ensolarado país euro-asiático, gravando as aventuras por meio de uma filmadora miniDV.
O aspecto vintage das gravações caseiras é o que aclima Aftersun, com destaque imediato para o trabalho de mescla que o diretor de fotografia Gregory Oke realiza ao longo dos quase cem minutos. Aliado ao som etéreo de Jovan Ajder e a montagem sentimentalmente carregada de Blair McClendon, o texto e a direção de Wells tomam forma pela veia nostálgica da infância.
No tempo em que virou moda o exercício de transformar em filmes de ‘prestígio’ os anos formadores da adolescência, tendência refletida no arrojado Roma e no enfadonho Belfast, Charlotte realiza um trabalho de afeto nada gratuito. Para analisar sua guinada artística e o papel que ocupa aos 30 anos e em emergente estado de ebulição criativa, ela revisita as férias na Turquia, um conjunto isolado de eventos banais e corriqueiros.
O fator decisivo de Aftersun é a contratação de Paul Mescal no protagonismo e as escolhas de atuação que o astro irlandês opta por seguir na pele de Calum. Silencioso, extremamente observativo e calmo, também na casa dos trinta, ele transmite no olhar e na linguagem corporal retraída todo o medo que acumula.
Para a filha Sophie, Calum é farol de segurança, austeridade e companheirismo. Ela, que vive em um mundo constantemente povoado por figuras masculinas, enxerga na ternura e na amizade dele o exato oposto do que sua mãe viu. Presente em linhas rápidas do roteiro de Wells e numa sequência singela gravada no estiloso telefone público cor de tomate, a mãe do filme é ausente de espaço físico, mas presente na aura.
Quando questionado pela garota o motivo de trocar alguns “eu te amo” com a ex-esposa, Calum justifica que, independente da separação, ela faz parte de sua família. Sentimento conjurado pela afetuosidade que Charlotte Wells dirige Paul Mescal, um profissional recente do mundo cinematográfico, mas que descolou em Normal People uma vitrine de seus talentos e alcance, e mesmo com pinta de astro comercial, ainda pensa com carinho e cuidado a respeito dos papéis que escolhe dedicar seu tempo e ofício.
As memórias da diretora, que perdeu o pai quando tinha dezesseis anos, não se curam com facilidade, tal qual o gesso molhado que Mescal empunha como armadura. Ele não se preocupa em mergulhar o braço no cloro da piscina ou nem mesmo liga de dar braçadas na água salgada do mar. A restauração da ferida, nebulosa nas explicações quando Sophie pergunta como aconteceu, se dá por meio da persistência e do esquecimento.
Uma hora, ele corta a branquidão dura com uma tesoura sem ponta; na outra, o machucado sumiu, por mais que o aspecto cru da pele sem o calor do sol apareça. Aftersun é assim: como maré branda, começa algo, termina outro, não se atenta a linearidade assim como evoca os flashes temporais nas sequências noturnas de uma espécie de balada. Entre as luzes da boate, Calum e uma Sophie adulta (Celia Rowlson-Hall) se misturam como água e açúcar.
Assistir a essa experimentação com 20 anos é prova do poder do filme de Wells. Aos 11, Sophie enxerga o pai como uma figura de autoridade e amparo. Aos 31, Calum vê na filha alguém a ser guiada e defendida, com muito a aprender na jornada. No meio termo entre as duas caminhadas da vida, Aftersun brinca com as expectativas e com os pontos de vista de um espectador no limiar entre a juventude e a vida adulta em sua complexa integridade.
Talvez, por isso, evocar um enjoo emocional seja a maneira mais compatível para definir o sentimento. É como viajar de carro com os vidros fechados e sentir o estômago embrulhar, mas ao invés do motivo ser um sanduíche de presunto duvidoso, o mal-estar nasce de uma situação não resolvida, um amor esfarelado ou a mera sensação de crescer para além dos moldes em que nos encontramos.
Sophie não ressente propriamente o pai, mas entende que o homem que conhece não é Calum em sua totalidade. Mas, quando confessa para ele as artes que aprontou no local, desde a troca de primeiros beijos até uma pulseira com créditos infinitos no bar, a garota espera essa troca mútua de confidências. Ou, por mais que a menina do filme não espere, a mulher que dirige essa quase biografia o faz.
Forma de examinar o não tão distante ontem e compreender o muito ascendente hoje, o trabalho de Charlotte Wells em Aftersun é digno de menção nas proficiências que executa com ilustre e célebre aptidão. Um drama de amadurecimento, uma história sensorial sobre um pai e uma filha em constante processo de conexão e apego, uma aventura europeia com pique de verão e um estudo sobre o luto e o que fazer com todo o amor que não possui mais remetente físico. O que vem depois do sol é tudo isso e um bocado mais, e fica a congratulação de Sophie: que mágico e virtuoso é poder viver tudo isso e, no processo, dividir com nossos queridos o mesmo céu.
Vitor: tão belo e intenso quanto esse filme excepcional (que assisti hoje com minha filha de 14 anos e minha companheira), é sua análise. Obrigado por compartilhá-la.