Davi Marcelgo
Em 2019, enquanto o mundo se encantava com Vingadores: Ultimato durante o verão americano, em Janeiro daquele mesmo ano, Vidro de M. Night Shyamalan chegava aos cinemas, porém com a recepção bem menos calorosa em comparação ao apogeu do MCU. Sem pirotecnia ou confrontos de seres megalomaníacos, a terceira parte da trilogia encabeçada pelo ‘novo Spielberg’ se manteve no cerne da filosofia de super-heróis e regressou às origens das histórias infantis. Distraídos pela viagem no tempo de Capitão América e equipe, o público não soube ‘dar muita corda’ ao filme, mas por quê?
Ora, Ultimato era o assunto mais comentado e o Universo Cinematográfico Marvel já tinha seu alicerce. A resposta que parece fácil, não é. Os filmes da ‘Casa das Ideias’ foram, sim, o principal fator para o ofuscamento de outras produções de heróis na época, principalmente o da conclusão de uma história que não era uma adaptação iniciada em 2000 e esquecida nas prateleiras pelos amantes da nona Arte. Shazam! também foi afetado, estreou junto de Vingadores e não alcançou nem 400 milhões de dólares em bilheteria contra mais de dois bilhões de Ultimato. Entretanto, há outra ‘pedra no sapato’: os motivos para Vidro não ter agradado aos paladares de, até mesmo, os aficionados pelo subgênero de super-heróis. Essa resposta é um pouco mais complexa e envolve muitos nomes.
Junto de Corpo Fechado, os X-Men ganharam seu primeiro filme também no início do século, diferente do longa protagonizado por Bruce Willis, o diretor Bryan Singer renunciou as cores salteadas e o espírito infantil dos quadrinhos dos mutantes. Ao invés do colã colorido, optou pelo couro preto a lá Matrix (1999). Não só ele como Demolidor – O Homem sem Medo (2003) beberam muito das ideias das irmãs Wachowski. O maior nome que nadou contra a tendência ‘emo vestindo preto’ foi a trilogia do ‘Teioso’ de Sam Raimi que, curiosamente, ironizou a moda em Homem-Aranha 3. Tudo bem, eram outros tempos, o público desse tipo de filme ainda não tinha se consolidado e, para retorno financeiro, apostar em abordagens semelhantes do contexto Hollywoodiano era o caminho seguro.
Christopher Nolan e Zack Snyder também têm certa culpa na escalada do Cinema de heróis se afastar cada vez mais da sua origem colorida e infantil. O vencedor do Oscar com sua trilogia do Cavaleiro das Trevas (2005-2012) preferiu ser um thriller policial, deu um uniforme tático ao ‘Morcegão’ e jogou fora qualquer aspecto circense do Coringa. Snyder, que já tinha dirigido o ‘sombrio’ Watchmen (2009), fez de tudo para ser um diferencial no mercado e, em oposição à Marvel, dirigiu O Homem de Aço (2013) e Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016). O ex-publicitário, para não soar juvenil, emendou filosofia, religião e frases densas para soar sério, o tiro saiu pela culatra e acabou sendo púbere ao não conseguir lidar com tantas questões. O subgênero, tanto no cinema quanto fora dele, ficou mais sisudo: de gibi, passou-se a chamar rebuscadamente de graphic novel.
Não há problema algum em querer ser sério, ter uma abordagem mais ‘adulta’ e se afastar da estética quadrinho (até a própria indústria das comics fez isso com Frank Miller e Alan Moore quando escreveram Demolidor e Watchmen, respectivamente, na década de 1980). A Marvel nos cinemas, por mais que se aproximasse de uma abordagem mais espalhafatosa, cheia de ‘piadinhas’, segurava (e muito) o freio. Tudo era programado, uniformes comedidos e pouco criativos visualmente, diga-se de passagem, o clímax de Vingadores: Ultimato, que seguiu na paleta acinzentada dos irmãos Russo, poderia ter ‘despirocado’ e ser uma explosão de cores.
No começo da ‘empreitada’, até houve uma certa vontade de algo antiquado por parte de Joss Whedon em Vingadores (2012), porém nada que fosse a caricatura de uma história infantil. Em suas 20 e tantas histórias, a Marvel se preocupou com a saga e não com uma linguagem ‘quadrinesca’. Seria exagero dizer que o filme de Shyamalan foi uma borboleta colorida da ficção pré-MCU, até porque o uniforme de David Dunn é uma capa de chuva verde-escura. Contudo, seria petulância dizer que não transborda a alma de gibi em seus 106 minutos de duração. O ponto é que Unbreakable (no original), Fragmentado (2016) e Vidro (2019) não são filmes de heróis de histórias em quadrinhos, mas sobre elas.
Durante muito tempo, os quadrinhos da Marvel e DC Comics foram destinados ao público infantil com tramas sem muita elaboração, dotados de ‘verborragia’ incessante, mesmo assim esbanjava criatividade para fazer crianças desejarem vestir capa e máscara. O roteiro escrito por M. Night Shyamalan está longe de ser desprovido de requinte, ele aproveita os detalhes inerentes às décadas de 1960 e 1980 nas HQs e faz um pastiche coerente com a proposta.
Há três elementos bem definitivos dos quadrinhos que estão presentes na trindade: nome, cores e a infância. O nome do protagonista David Dunn é inspirado em muitos personagens que também possuem nome e sobrenome com a mesma inicial, recurso chamado de aliteração. São eles: Reed Richard, Bruce Banner, Peter Parker, Susan Storm, Stephen Strange, Lois Lane e Matt Murdock, a lista é longa. Stan Lee, co-criador de muitos desses personagens, já revelou em entrevista que o real motivo para isso era só sua fraca memória. Porém, a figura de linguagem também pode ser utilizada para criar ritmo e é utilizada na educação infantil. Para as crianças, memorizar palavras com sons parecidos também é mais fácil.
As cores de Dunn e Elijah Price (Samuel L. Jackson) são secundárias e se complementam, não no sentido de cores complementares, mas sim na dinâmica das HQs. Muitos vilões têm como cor o verde e o roxo, associadas ao nojo, ganância e veneno, características más. O Homem-Aranha tem uma vasta lista de antagonistas com fantasias dessas tonalidades: Duende Verde, Mysterio, Lagarto, Abutre, Escorpião e Homem-Areia. Claro que, na época, havia uma questão envolvendo as limitações de impressão, bem como se trata de um detalhe narrativo. Tanto que são cores em oposição às primárias que os heróis usam, como o azul e vermelho.
São poucos heróis que usam tons de roxos, o maior exemplo é a Ravena dos Jovens Titãs, ela tem relações com um lado sombrio, portanto foge do comum em protagonistas de quadrinhos. Já o verde é mais presente em célebres: Lanterna Verde, Hulk e Arqueiro Verde. Tudo isso está presente em filmes das lendas, porém, mais como uma repetição do material original do que realmente uma escolha pensada para contar o que quer ser contado. Shyamalan busca, em páginas de nanquim, a forma da sua trilogia. David Dunn usa verde e o vilão Sr.Vidro (Samuel L. Jackson) veste roxo, eles estão conectados por lados opostos de uma balança, o indestrutível e o frágil. Então, é cabível que eles utilizem as cores vistas em uniformes.
Já os personagens interpretados por James McAvoy (Kevin Wendell, suas outras personalidades e a Fera), são contornados pelo amarelo, tanto na calça utilizada por ele quanto nos pôsteres de divulgação de Vidro. Dá para atribuir muitos significados a ela: perigo por representar uma ameaça física a Dunn ou por ser a cor da conscientização à saúde mental e, até mesmo, o amarelo ser complementar ao roxo. Os inimigos aliados vestem cores que rimam.
Os três personagens usam suas cores até em roupas que não são os seus uniformes. Em grande parte da obra, eles vestem peças do hospital psiquiátrico em que foram presos e os tons correspondem aos protagonistas. Parece uma ideia retirada direto da série de TV dos Power Rangers, lembrando quando Jason usava ‘regatinha’ vermelha em todo canto.
Em Corpo Fechado, descobrimos que Elijah Price nasceu com uma condição que torna seus ossos extremamente frágeis e, impossibilitado de brincar na realidade, sua mãe apresentou gibis para se divertir. A origem do trio é ‘puro suco’ desse gênero. Para compor a receita de como se cria seres poderosos, os ingredientes principais estão dispostos à mesa: trauma, acidente e poderes de nascença. Mas, para cozinhá-los, o fogo usado é diferente.
Se nas ‘revistinhas’ as crianças eram influenciadas pelos personagens, nestes filmes, quem são influenciados por elas e pela infância, ou ausência dela, são os protagonistas. Vidro retoma a ideia perdida de que heróis são para crianças. A motivação do Sr. Vidro é criar um grande confronto no ponto mais alto da cidade para provar que sobrehumanos existem e que as histórias que ele cresceu lendo existem de verdade. David Dunn é motivado e se torna herói pela aproximação com o filho, que, mais velho, passa a ser o ‘nerd da cadeira’ dele. As personalidades de Kevin Wendell aparecem depois da morte do pai e os frequentes abusos da mãe, são elas que o protegem. No caso de Elijah, os personagens de gibi são sua proteção num mundo perigoso para ele, em que uma simples brincadeira é motivo dos seus ossos serem moídos.
Mas se Vidro é uma história inteligente, cheia de elementos narrativos oriundos de quadrinhos e que se aproxima mais de Zack Snyder e Christopher Nolan (no sentido temático e não prático), por que o longa foi rejeitado? Como já dito antes, o cineasta não está fazendo um épico de herói. Grandes sequências de ação, monstros de CGI e escala maximalista não importam – o filme tranca os personagens em um único local por mais de uma hora e obriga-os a conversar, mas, mesmo com tantos diálogos, é silencioso. Assim como os dois antecessores, o quinquênio se diferencia dos demais filmes de ‘bonecos’.
Fragmentado (2016) é um suspense que se disfarça de filme de ‘super-vilão’ em seus últimos minutos, quando a Fera desperta e M. Night Shyamalan o grava de costas, na altura do ombro, como se estivesse filmando o Hulk. Como também nas cenas de demonstração de força que abrem um abismo em comparação à capacidade física das reféns de Kevin Wendell. Porém, o ‘pulo do gato’ está na conexão entre um filme e outro. Só dá para saber que o thriller é uma sequência do longa de 2000 quando David Dunn aparece na última cena.
Revisitando, nota-se que o diretor faz alguns elos, seja na própria apresentação da força da Fera, que está à altura de Dunn, ou na cena final de Kevin, que aparece conversando em frente a um espelho – a primeira cena de Corpo Fechado, introduzindo Elijah, é filmada através de um reflexo. Enquanto a Marvel enchia de menções e aparições, Shyamalan foi mais sutil.
A vilã de Vidro, Dra. Ellie Staple (Sarah Paulson) faz parte de uma organização que apaga da existência pessoas com habilidades especiais. Foi isso que muitos idealizadores acabaram por fazer ao longo dos 20 anos de ‘boom’ do subgênero: apagaram as origens do mundo da invenção das crianças, histórias feitas para elas terem alter-egos.
A trilogia de M. Night Shyamalan é uma reflexão sobre o gênero, a mídia e os arquétipos. Ela se distancia do que estava sendo feito no Cinema de heróis antes, depois e agora. O público ficou acostumado com a estética Nolan-Snyder e com os enlatados do MCU que, no piloto automático, esqueceu de pensar um pouco mais em toda unidade de Vidro. O filme é a conclusão perfeita para uma trilogia e um manifesto apaixonado por gibis. Para aqueles que ainda não viram ou não revisitaram desde 2019, vale abrir de novo a janela, agora com menos alvoroço por joias do infinito, referências e histórias “grandes demais para mentes pequenas”.