Em Nova Deli, dois irmãos curam Tudo o Que Respira

Cena do documentário Tudo o Que Respira. Na imagem, vemos Salik Rehman de frente com um milhafre-preto, uma ave de rapina preta com o peito branco, e os dois se encaram. Ambos estão dentro de um depósito, que serve como um espaço de trabalho. O animal está em cima de uma bancada com vários utensílios utilizados pelos homens que se dedicam ao cuidado dessa espécie. Salik tem cabelos e barba na cor preta e veste uma camisa social preta com listras brancas e óculos de grau.
Com estreia no Festival Sundance de Cinema, Tudo o Que Respira é o segundo documentário do cineasta indiano Shaunak Sen (Foto: Submarine Deluxe)

Raquel Freire

Tudo o Que Respira começa com uma paisagem escura enquanto uma câmera se move sobre o solo repleto de lixo na cidade de Nova Deli. Enquanto outros animais se espreitam no fundo, a imundície da rua serve como alimento para os ratos que se apressam em uma moldura desfocada, e o barulho que eles fazem fica mais alto à medida que mais deles se alimentam. Ao que o ruído faminto cresce em volume, os faróis dos carros ficam mais brilhantes à distância – um sinal de humanidade que impacta diretamente a existência deles, e a cena termina ao passo que é dominada pela ultrapassagem de uma luz branca. Essa é apenas a primeira de muitas imagens de tirar o fôlego que estão presentes no mais recente documentário de Shaunak Sen.

Sen foca no cotidiano de Nadeem Shehzad e Mohammad Saud, dois irmãos que têm dedicado duas décadas de suas vidas ao cuidado de aves feridas, especificamente daquelas conhecidas como milhafre-preto. Nova Deli é uma das cidades mais poluídas do planeta e a presença da indústria, juntamente com o processo de urbanização, são fatores que afetam profundamente a vida selvagem. Com a qualidade e a visibilidade do ar extremamente impróprias, os milhafres foram obrigados a se esforçar para fazer o que nunca exigiu esforço: voar. O diretor enquadra regularmente as aves contra uma nuvem de fumaça ou uma paisagem urbana coberta pela névoa, de forma a tornar essa situação tão visível como observar um animal que se afoga.

Cena do documentário Tudo o Que Respira. Na imagem, fotografada de baixo para cima, vemos um homem vestido inteiramente de branco à distância, quase no topo da escadaria de um monumento. Ele está alimentando as aves, e muitas delas voam no céu. Há algumas outras construções ao redor. O céu está azul e é um dia ensolarado.
A Wildlife Rescue, organização dos dois irmãos, cuidou de mais de vinte mil aves e animais desde seu surgimento em 2010 (Foto: Submarine Deluxe)

O destaque do documentário gira totalmente em torno da direção e fotografia. Tudo o Que Respira não é uma produção tradicional sobre a vida selvagem ou sobre a mudança climática e não conta com a presença de especialistas nem com fatos dispostos na tela. As informações obtidas sobre a situação dos milhafres vêm de Nadeem e Saud, que enfrentam seus próprios desafios ao mesmo tempo que tentam permanecer alertas em uma região do mundo cada vez mais tensa quando se trata de questões sociais, políticas e de classe. A obra entende profundamente que cuidar de tudo o que respira não é tão fácil quanto uma boa intenção faz parecer. Muitas vezes, o cuidado requer sacrifício e compromisso intensos; apesar de tudo, isso não é uma tarefa impossível.

Durante todo o documentário, os diretores de fotografia Ben Bernhard e Riju Das fazem uso da técnica conhecida como cinéma vérité, ou cinema verdade, que combina a improvisação com o uso da câmera para mostrar a verdade ou enfatizar assuntos que se escondem por trás da realidade. Além disso, All That Breathes (no original) é formalmente projetado em uma horizontal, para que se possa ver panoramicamente o que acontece quando toda a natureza se reúne ao nível da rua. Essa junção faz com que aquilo que está sendo observado dê lugar a algo a mais, seja em primeiro ou segundo plano, enfatizando como, em nenhum momento, é insinuado uma hierarquia de importância entre o trabalho de Nadeem e Saud e as crises enfrentadas pelo país, como a poluição crônica do ar e a crescente violência islamofóbica.

Cena do documentário Tudo o Que Respira. Na imagem, vemos Mohammad Saud dentro de uma das gaiolas voltadas para o cuidado dos milhafres-preto, feitas de pedaços de cano e tecido. Ele está agachado no chão e veste uma camiseta cinza, uma calça bege e óculos de grau. Ao seu redor, podemos ver seis aves de rapina. Apesar da foto estar um pouco escura, ainda é dia e é possível ver a silhueta de prédios através do tecido.
All That Breathes teve uma ótima recepção pela crítica e conquistou os principais prêmios da temporada (Foto: Submarine Deluxe)

Sendo o primeiro a ganhar o prêmio de Melhor Documentário tanto em Sundance quanto em Cannes, não é de se surpreender que a direção de Shaunak Sen esteja na disputa pelo mesmo reconhecimento no Oscar 2023. A House Made of Splinters, All The Beauty and The Bloodshed, Navalny e Vulcões: A Tragédia de Katia e Maurice Krafft são os longas que também buscam levar a estatueta dourada para casa. Apesar de não ser o favorito ao troféu, os poéticos 96 minutos de duração de Tudo o Que Respira são essenciais e de extrema importância na medida em que uma história micro é utilizada para fazer uma crítica relevante e valiosa sobre um contexto macro.

Há muitas boas razões para que o documentário seja considerado como um dos melhores lançados no ano de 2022. A obra leva seu próprio tempo para passar por todo o conteúdo apresentado, e a paciência de Sen é essencial para capturar momentos tão mundanos (e tão bonitos) que fazem da obra o que ela é. Apesar do esgoto que inunda o chão dos irmãos e a ameaça de uma guerra nuclear que ecoa das televisões, o longa se mostra como um retrato vivo de que a vida deve continuar. E continua, deixando uma faísca de esperança sobre o futuro, no que eles continuam a marchar e resgatar aves que caem do céu.

Deixe uma resposta