Pedregulhos e o poder silencioso dos oprimidos

Cena do filme Pedregulhos. A imagem mostra um homem e um menino, ambos indianos, em pé sobre um chão de areia, a uma certa distância um do outro. No fundo há uma pequena cabana com diversos produtos pendurados. O cenário é seco, mas com verde nas copas de algumas árvores.
Pedregulhos integra a Competição Novos Diretores da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Rowdy Pictures)

João Batista Signorelli

Um pai, um filho, e uma árida paisagem. Estes são os três protagonistas de Pedregulhos, longa indiano selecionado para representar o país na corrida pelo Oscar de Melhor Filme Internacional em 2022, e que está em exibição na programação da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. O filme parte de um pai alcoólatra que retira o filho da escola, forçando-o a acompanhá-lo na procura da mãe, que fugiu de casa devido à violência doméstica sofrida pelas mãos do marido. 

Bem longe dos domínios de Bollywood, o longa de estreia de P.S. Vinothraj foi realizado no estado de Tamil Nandu, situado no extremo sul do país, e que tem uma grande potência cinematográfica própria no idioma tamil, conhecida como Kollywood. Periférico à própria indústria regional, Pebbles foi realizado entre amigos, fruto de uma intensa dedicação do diretor em contar uma história que funciona como uma espécie de vingança para uma experiência vivida por sua irmã. Com elenco de não-atores e locações na região de uma minúscula vila no interior do estado, a produção transborda de realidade e verossimilhança, preservando o legado de mestres do Cinema indiano como Satyajit Ray.

Cena do filme Pedregulhos. A foto mostra uma menina junto a uma mulher adulta, ambas de pele escura, e cabelos pretos, vestindo roupas coloridas. Elas se encontram agachadas em meio a um mato seco. Ao fundo, vemos um morro com pedras marrons.
Embora a personagem da mãe nunca nos seja apresentada, diversas figuras femininas enriquecem a jornada (Foto: Rowdy Pictures)

Com algumas longas cenas em plano sequência, onde a câmera na mão persegue os atores de um lado para o outro, a fotografia de Jeya Parthiban e Vignesh Kumulai se alterna entre acrescentar intensidade aos conflitos, como quando o pai encontra a família da esposa, e capturar a vastidão e a solidão das paisagens. No trabalho de sonorização, Hari Prasad optou com o diretor por captar o som diretamente nas locações, o que levou a fazer com que a equipe tivesse que ficar descalça para que o ruído dos passos sobre os pedregulhos do chão não pudesse ser ouvido.

Mais seco que a natureza semi-desértica que ocupa a tela do vencedor do Tiger Award no Festival de Roterdã, é o coração do pai (Karuththadaiyaan, o único do elenco com experiência prévia em atuação). Inconformado de não ter mais controle sob sua família, e incapaz de enxergar para além de seu próprio desejo de preservar a posição de poder que acreditava ser legítima, ele se afunda na frustração potencializada pelo calor e a secura. Já o menino (Chellapandi), é um observador silencioso, que às vezes foge, outras segue, ou mesmo enfrenta,  transparecendo em seu olhar e em suas ações a indecisão de não saber o que fazer diante daquela figura raivosa que o obriga a caminhar sob o sol. 

Mas ainda há uma quarta protagonista em Pedregulhos, uma que nunca aparece em tela, mas cuja presença sempre permanece pairando no ar. A personagem da mãe é muito mais que mero MacGuffin para levar o pai do ponto A ao ponto B, pois não apenas sabemos de algumas de suas ações dramáticas em determinados momentos, como podemos claramente perceber seus obstáculos e motivações a partir das ações do pai e de outros personagens. Para compensar a sua ausência física, o filme guarda a sua carta mais preciosa para o final inconclusivo.

Cena do filme Pedregulhos. A foto mostra ao longe um menino em pé, sob a sombra escassa de uma grande árvore seca. Do outro lado da árvore, ao fundo, vemos a silhueta de uma mulher conduzindo uma vaca. A paisagem é seca, com árvores visíveis ao fundo.
Koozhangal foi aclamado em diversos festivais ao redor do mundo (Foto: Rowdy Pictures)

Nele, P.S. Vinothraj não opta por dar todas as respostas para o conflito acompanhado até então, mas sim por oferecer um retrato do outro lado daquela moeda, onde percebemos que todo o ódio de um homem como aquele protagonista não seria suficiente para a manutenção de sua posição dominante. Em um longo e paciente plano estático, o mais impactante do filme, vemos um fio de esperança ser tecido a partir de uma das muitas atividades que dão a aquelas mulheres mostradas uma possibilidade de exercer um poder silencioso sobre a opressão de homens como o pai que acompanhamos, assim como o menino o fez em seus pequenos atos de rebeldia. 

Como aquele homem poderia sobreviver sem ter aquela mulher para lhe buscar água no poço e lhe preparar comida? Aquele que acreditava estar no controle passa a ser assombrado pelo medo ao se descobrir em uma relação de dependência. E aquela, outrora oprimida, resolve sua própria posição anterior de submissão como arma. A imagem final não representa essa transformação em si, mas profetiza o potencial para que ela possa acontecer. Enquanto o homem sofre com o calor e a sede da região semi-árida, a mulher já sabe onde conseguir água. E assim, aos poucos cresce o silencioso poder dos oprimidos.

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