O palco como uma plataforma de encontros em Pupik – Fuga em 2

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Foto: Bruna Garcia/Arte e Ativismo

Felipe Monteiro

O Teatro Municipal de Bauru recebeu na noite de quarta-feira, 26 de outubro, Naomi Silman e Yael Karavan, duas atrizes estrangeiras que carregam um laço de amizade e profissionalismo que as une uma vez por ano para contar a incrível história Pupik – Fuga em 2. Mais que um espetáculo, a vida das atrizes com todas as suas vivências e bagagem cultural nos é contada com delicadeza, emprestando elementos do onírico, do cômico e da arte para tecer a narrativa como em uma rede que prende a atenção do espectador do começo até o fim. Partindo de um movimento do eu para o mundo, as atrizes contam a sua história, ou a nossa história, a história da humanidade.

Como a peça é uma narrativa que mistura memórias e ficção, é importante conhecer um pouco das atrizes/personagens para que suas vidas revelem o contexto do que será contado. Ambas são estrangeiras, se conheceram em um curso de teatro na Inglaterra. Naomi é proveniente do leste europeu e hoje mora no Brasil, faz parte da Companhia LUME Teatro e é especializada na arte de palhaço. Yael é israelense, atualmente mora na Inglaterra, mas vive viajando por países da Europa apresentando seus espetáculos; sua arte é mais focada em teatro físico, que usa as potencialidades do corpo para encenar e narrar. Falam mais de dois idiomas, têm raízes judias, por suas viagens tiveram contato com as diversas culturas, diferentes povos, as idiossincrasias que constituem os indivíduos únicos e os fazem iguais em suas diferenças. Com suas experiências humanas, essas mulheres cheias de mundo abrem o baú de suas lembranças para nos contar uma bela história sobre nós mesmos.

O embarque para dentro de nós

A peça ocorre com o público sentado no palco em duas estruturas de arquibancada montadas de cada lado e posicionadas transversalmente à plateia tradicional, de forma que ficássemos na parte mais interna, semifechados pela cortina que deixava um espaço de vista para as cadeiras vazias. No meio estava uma área reservada à cena. Sentadas nas poltronas do teatro, as atrizes, distantes uma da outra, aguardam o horário de seu embarque. A construção cenográfica imaginária aqui é uma simulação das plataformas de aeroporto, ambiente familiar às duas. Elas cruzam o estreito tablado fora das cortinas com pressa até que se esbarram e surge o momento do encontro, palavra essa que é extremamente significativa, o encontro das amigas que não se viam é também o encontro do outro, do estranho em que nos reconhecemos, a seguir, as viajantes já identificadas entram para a área de atuação, um ambiente intimista cuja iluminação um tanto baixa dá o tom. Esse simbolismo de ir para dentro de nós dá início à viagem sobre o íntimo humano.

A primeira cena no reduto já é de impacto. As atrizes se comunicam conosco querendo contar algo, mas falam em outros idiomas, causando um choque cultural que é parte de situações pelas quais elas passaram para nos mostrar o quão frágeis podemos ser ao se retirar nosso idioma. Então, já falando em português, a cena a seguir é sobre a linguagem do corpo, que tem caráter universal, como o corpo pode falar e se expressar em momentos nos quais não temos palavras. Nesse jogo de linguagens e culturas, pontos importantes são abordados como a identificação e expressão cultural na constituição do indivíduo que carrega esses elementos consigo por onde vai, formando seu modo de sentir e entender o mundo, disso desdobram-se problemas como a falta de comunicação devido às diferenças culturais e seus devidos constrangimentos. Mas isso esse ponto ganha complexidade com o desenvolver da peça.

A seguir, a narrativa ganha em dramaticidade e poesia, o globo desce e as atrizes realizam uma performance rica em movimentos delicados, porém precisos, que expressam as andanças das duas pelo mundo. Nisso, elas se apegam às suas devidas bagagens e, novamente, vale ressaltar a precisão na técnica delas que preenche o ato de profundidade, já que a bagagem passa a ser parte delas e, aos poucos, ambas abrem as malas em movimentos viscerais, como se elas se abrissem para nós. Deste ponto introdutório que aborda alguns elementos ainda em forma crua, a peça se desenrola e vai ganhando um encanto pela união intrínseca das artes divergentes das intérpretes. A estética clown é magistralmente aplicada para criar riso, descontração, tirar o público do seu estado de normalidade e da imersão na narração para fazê-lo participar e viver a história, enquanto que o teatro físico, com o incrível domínio corporal das duas, nos seduz e injeta altas doses de dramaticidade rica em sentimentos humanos – sem ser exagerado e caricato.

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Foto: Bruna Garcia/Arte e Ativismo

Vagando pela humanidade

Já no segundo momento, algumas cenas são de extrema importância para a história e merecem destaque. A primeira sucede a introdução, com as malas abertas, as personagens remontam suas memórias  preciosas, lembranças que fazem parte das histórias de todos nós como o primeiro amor, os parentes queridos, a infância e outros; o ápice ocorre quando as duas vestem uma colcha de retalhos feita de inúmeras fotos, as luzes se apagam e o que sobra são pequenas lanternas que cada uma segura em mãos. Em uma encenação excepcional, elas vão apontando a pequena luz para as fotos no corpo da outra, criando um balé de sombras, uma metáfora com os antepassados, com as recordações e um recurso lúdico de flashback.

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Foto: Bruna Garcia/Arte e Ativismo

Da retirada de elementos do passado, uma nova cena ganha forma e começa com uma briga por um par de botas que acaba separando as amigas, o clima se acirra e ganha música marcial, as atrizes vestem-se como paródias de um estereótipo de ditador, mais precisamente de Hitler, passam então a dividir o palco com uma fita, erguem uma bandeira que representa o país que acabam de criar. De um lado, o país do Bigode para Baixo, com a líder ditadora Yael, o hino nos é apresentado e não passa de uma cantiga infantil que fala de raízes culturais como base da nação, do outro lado do palco o mesmo acontece com Naomi ditando as regras de sua nação do Bigode para Cima. Nesse ponto, cada ditadora escolhe na plateia alguém que não condiz com a identidade do país, aplica-lhe um adesivo triangular amarelo e expulsa para o outro pais. Esse jogo é uma clara referência aos emblemas usados no nazismo para separar negros, judeus e homossexuais nos campos de concentração. Apesar da tensão e do peso da cena, a atmosfera flerta com o cômico, já que mais uma vez a técnica de palhaço é utilizada, cada lado do público é instigado a cantar o hino do seu país em uma disputa infantil de quem canta mais alto para não ouvir o inimigo, e nessa brincadeira o público se diverte e a sombra do terror passa despercebida pela sublimação construída no cômico.

O ato final é extremamente sensível, profundo e realizado com a visceralidade de Yael e Naomi. Já despidas de suas histórias, vestindo o que parece ser fralda e camisola, ambas se abraçam fortemente, realizam uma performance envolvendo o umbigo (que em hebraico é pupik) e então ligam-se por um fio vermelho que sai da fralda, cada uma caminha em direção oposta alongando o cordão, a luz vai diminuindo até iluminar somente o elo entre as duas, então apaga-se e ao reacender as amigas estão de frente uma para a outra com uma placa escrito “estrangeira” pendurada no peito e o espetáculo termina. O cordão umbilical que é o elo da vida, que une indivíduo e progenitora, é a busca pelo afeto e pelos laços interpessoais que nos unem como iguais, num encontro com o estranho para nos reconhecer.

De estrutura simples, a peça consegue magnetizar o público, envolvendo-o na história e mergulhando num profundo mar de reflexões sobre humanidade. Pudemos rir de nós mesmos, das futilidades pelas quais nos movemos para criar muros, guerras, conflitos, fugas. Refletimos sobre nossas raízes, o que nos constitui como indivíduo, sobre nossa identificação. Pudemos perceber que somos todos únicos, temos as nossas culturas, nossos medos, lembranças, sentimentos, histórias, somos iguais e estamos ligados uns aos outros na sociedade. Tudo isso alcançado com as habilidosas mãos das mulheres que contaram para gente uma história sobre nós escondida em suas lembranças. O espetáculo é único por ter mulheres contando a história humana, por mostrar que amizade feminina é muito mal abordada na indústria cultural, já que o fio condutor do espetáculo é a memória das duas amigas contada para o público, e também por falar do que nos une num momento de crise em que inúmeros grupos sociais estão fugindo para sobreviver, uma forte onda conservadora e xenófoba cresce e assistimos a conflitos políticos e culturais.

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