Gabriel Oliveira F. Arruda
A mais recente da primeira leva de séries do Disney+ produzidas pela Marvel Studios, Loki chega com a proposta de resgatar a personagem titular dos eventos trágicos de Vingadores: Guerra Infinita, utilizando a viagem no tempo de Ultimato como ponto de partida para sua trama de ficção científica old school. Contudo, se tem uma coisa que o Deus da Mentira de Tom Hiddleston nos ensinou ao longo de sua década no Universo Cinematográfico Marvel, foi nunca confiar nas aparências.
Após as peripécias temporais para reaver as Joias do Infinito terem resultado na evasão de um Loki pós-Vingadores das autoridades terrenas e asgardianas, ele é logo capturado por uma entidade ainda mais misteriosa. Grande parte do primeiro episódio, Glorioso Propósito, se dedica a apresentar a Autoridade de Variação Temporal (AVT), a misteriosa organização que clama governar a ordem do tempo e que acusa Loki de ser uma “variante”: alguém que divergiu do caminho designado pelos Guardiões do Tempo na Linha do Tempo Sagrada e que, portanto, não deveria existir.
O piloto se sobressai ao fazer a ponte entre o anti-herói que vimos morrer pelas mãos do Titã Louco e o maníaco homicida de Os Vingadores, por meio de um inteligente interrogatório que o força a rever os seus “maiores” momentos – passados e futuros – e a confrontar sentimentos profundos que ele manteve escondidos. O que antes seria uma sentença de morte vira oportunidade quando o agente Mobius (Owen Wilson) pede a ajuda do notório trapaceiro para capturar outra variante fugitiva extremamente perigosa: ele mesmo.
A partir daí, Loki habilmente torce sua premissa de ficção científica serial em uma narrativa de redenção romântica que, diferente de suas aparições prévias, explora o personagem principal não apenas no contexto do universo Marvel, mas como a figura mítica e caótica do Deus da Trapaça. Colocando-o diretamente em conflito com a figura de autoridade e ordem suprema, a série criada por Michael Waldron consegue fazer florescer a verdadeira natureza de Loki como um agente do caos e da mudança, explorando intimamente sua natureza dual e paradoxical de jeitos peculiares e inventivos.
Desses, o mais evidente e tangível é a introdução de Sylvie (Sophia Di Martino), a variante que Loki é chamado para caçar, uma mulher com contas a acertar com a AVT e que provê a maior parte da força motriz da série após sua chegada ao final do segundo capítulo, A Variante. Ao encarar ferozmente o Loki que conhecemos e declarar que aquilo “… não é sobre ele”, o tabuleiro está montado para que os próximos episódios respondam à pergunta: então, sobre o que é?
Muito como WandaVision foi uma homenagem às comédias românticas da televisão americana e Falcão e o Soldado Invernal foi uma exploração de tramas de espionagem internacional nos calcanhares do Blip, Loki se vende como uma ficção científica serializada remetente à Doctor Who – se Doctor Who tivesse um orçamento. Quando um grupo de personagens pode ter seus nomes concebivelmente traduzidos para “Senhores do Tempo”, esse tipo de comparação é inevitável, e a série é esperta o suficiente para abraçar a galhofa e os questionamentos existenciais, ao invés de se envergonhar deles.
A amizade entre Loki e Mobius ajuda a realçar tais questionamentos, com os dois personagens se desafiando mutuamente ao longo de suas cenas juntos. Enquanto o agente ajuda a expor e confrontar as reais motivações e os objetivos de Loki, o deus ajuda a expor as falhas lógicas da AVT e a fazer com que Mobius comece a questionar o propósito daquilo tudo. Ambos os atores vestem muito bem a dinâmica de comédia buddy cop e trazem à tona o melhor do outro.
Afinal, o que faz um Loki ser um Loki? Se há apenas uma linha temporal, existe mesmo livre arbítrio? “Por que diabos há um jacaré aqui?” São todas perguntas feitas e, até certo ponto, respondidas (até mesmo a do jacaré), em episódios diferentes, sem sobrecarregar o telespectador. É claro que Loki também possui ganchos que só serão respondidos mais à frente, mas é louvável ver o quanto cada capítulo se esforça para contar tramas que respondam esses questionamentos ou que introduzem novos e instigantes conceitos.
A relação entre o Deus da Trapaça e sua variante é um dos grandes trunfos da série, chegando de fininho em um episódio que foi erroneamente considerado como um filler por alguns fãs por não conter muitas respostas, mas que apresenta muito bem a dinâmica entre as duas personagens e estabelece o tom da segunda metade da temporada. Não é nada menos do que poético que a tentativa mais sincera da Marvel de introduzir uma trama romântica em seu universo venha de Loki, o personagem que uma vez provocou Thor (Chris Hemsworth) por conta de seu romance com a mortal Jane Foster (Natalie Portman) em Thor, mais de 10 anos atrás.
É claro que já houveram subtramas românticas em filmes da Marvel (Thor teve provavelmente a mais acentuada), mas Loki marca a primeira vez em que tal gênero assume o primeiro plano da história e guia as ações de seu personagem. Não só isso, mas o fato de Loki estar apaixonado por uma versão alternativa de si mesmo molda a narrativa e introduz um nível de profundidade até então inexplorado pela Casa das Ideias. Nas palavras da diretora da série, Kate Herron:
“É muito caótico se apaixonar por uma versão de si mesmo, mas ao mesmo tempo é uma ideia tão ruim e tão travessa, que é claro que o Loki se apaixonaria por si mesmo. Mas ele também é um personagem que precisa vencer seus demônios e encontrar o bem em si mesmo para poder seguir nessa jornada de redenção. No centro de tudo isso temos essa história de amor e ninguém se apaixona na hora certa.”
Kate Herron, “Avante: Os Bastidores de Loki”
Embora Loki e Sylvie iniciem essa jornada como inimigos, a ameaça de uma lua explodindo sob suas cabeças logo faz com que ambos reconsiderem suas desavenças e comecem a trabalhar juntos. No menor episódio da temporada, Hiddleston e Di Martino introduzem uma química singular e incendiária no enredo e nos fazem ansiar cada vez mais por todos os momentos que partilham. Durante a fuga, os dois tem uma conversa honesta sobre família, amor e até mesmo sexualidade, na qual Loki revela ser bissexual.
Onde um é oportunista e manipulativo, a outra é reativa e agressiva, e parte do que torna a dinâmica entre os dois tão intoxicante é como juntos eles conseguem realçar suas melhores qualidades e superar suas maiores falhas. Depois de passarem doze horas tentando sobreviver em um planeta prestes a morrer, quando Loki suavemente diz à Sylvie que acha ela incrível e eles dão as mãos, somos deixados com a impressão de que algo verdadeiramente monumental está acontecendo. Algo capaz de mudar o universo.
Não é por acaso que o crush de Loki consigo mesmo comece à beira do fim do mundo. No segundo episódio, a ideia de que Sylvie se esconde em apocalipses é introduzida, já que os cataclismas ocultam qualquer alteração que a personagem possa fazer na Linha do Tempo Sagrada. Mitologicamente, faz todo sentido Loki ver no fim do mundo uma oportunidade: o deus é intimamente relacionado com a vinda do Ragnarok na mitologia nórdica, onde seus filhos são responsáveis por grande parte da batalha.
Sylvie diz a ele, momentos antes do fim de Lamentis-1: “O universo quer se libertar, então manifesta caos. Como eu ter nascido a Deusa da Mentira”, uma fala que revela não só algo sobre ela como também sobre o papel fundamental dos Lokis no universo. Apesar de adotar atitudes vilanescas em todas as suas aparições, ele é primordialmente um desafio à ordem e aos limites, uma resposta às tentativas de contenção e controle e por isso tira sua força de apocalipses, por ser tanto herói quanto vilão, ser tanto sábio quanto é tolo, de ser uma dualidade e um paradoxo em si mesmo, um narcisista egoísta cujo maior medo é ficar sozinho.
Durante seu memorável período no Vazio, o lugar para onde a AVT manda as linhas temporais “podadas”, Loki conhece diversas versões de si mesmo e é obrigado a enfrentar de cara as diversas características que o definem e finalmente encarar os sentimentos que tem por sua variante. É Sylvie que primeiro percebe a oportunidade de usar o carcereiro deles, Alioth, como uma porta para achar a pessoa por trás de tudo, reafirmando o poder de Loki sobre os apocalipses. É um testamento à força do roteiro de Loki o Vazio ter sido utilizado não apenas como um parque de easter eggs da Marvel (afinal, quem reclamaria de um bom e velho Thanoscoptero?), mas como uma invenção para externalizar legitimamente os conflitos de seu protagonista e fazer ele superar seus limites.
A série está na sua melhor forma quando assume as qualidades do próprio Loki, sendo duas coisas ao mesmo tempo com resultados caóticos: ao mesmo tempo uma ficção científica das antigas e uma adição moderna ao cânone do MCU; um estudo de personagem intimista e uma expansão repentina e até mesmo violenta da realidade em que esse personagem vive; equilibrando a arquitetura brutalista e déco dos escritórios da AVT com paisagens históricas ou alienígenas; fazendo bom uso de sintetizadores em sua trilha sonora futurista e logo depois introduzindo uma reinterpretação da ópera de Richard Wagner.
Em um final de temporada que desafia a distinção entre “meditativo” e “entediante”, Loki se mantém fiel à esse glorioso propósito mitológico, com Loki ao mesmo tempo apaixonado e em guerra consigo mesmo, uma dança de facas e beijos que entrega tanto uma conclusão para as tramas apresentadas nesse primeiro ciclo quanto uma promessa do que há por vir. Com uma confirmação surpresa de uma segunda temporada sendo desenvolvida, as implicações de seu final traçam os pontos iniciais da Fase 4 no Cinema e na Televisão. Com rumores de que o personagem esteja escalado para aparecer em Doctor Strange in the Multiverse of Madness, Loki se posiciona como uma das peças chaves para a continuação da saga dos Maiores Heróis da Terra no futuro.
Ainda há problemas clássicos herdados do modelo Marvel: personagens como a juíza Renslayer de Gugu Mbatha-Raw e o misteriosamente-nomeado “Aquele Que Permanece” de Jonathan Majors têm pouca caracterização com o qual trabalhar, e recebem a promessa de serem explorados em produções futuras. O relacionamento complicado de Mobius com Renslayer tem um final morno no sexto episódio, salvo pelas excelentes interpretações, mas que faz pouco pelos personagens, enquanto o monólogo expositivo de Majors nos deixa definitivamente intrigados, mas sua personalidade fica diluída nas toneladas de informação que ele despeja.
Como o deus no qual foi inspirado, Loki é caótica, trágica, divertida, cruel e profundamente romântica, dando diversas oportunidades para que Tom Hiddleston exiba seus talentos teatrais na reinvenção de um dos personagens mais marcantes de sua carreira. E, graças a um elenco excepcional, um roteiro singular e uma direção travessa, somos deixados ansiando por mais desse personagem, e de todas as variações deles que podem existir. Especialmente aquelas que sabem que não estão mais sozinhas.