Bruno Andrade
“Como um dos homens sem mulheres, eu rezo do fundo do coração. Parece que não há nada que eu possa fazer agora a não ser rezar. Por enquanto. Possivelmente.”
O mundo ficcional de Haruki Murakami se parece com o nosso, revestindo-se de uma aura melancólica e acinzentada, na qual habitam indivíduos sem rumo, quase vazios, e à deriva. Somos lembrados que estamos diante de uma obra ficcional quando encontramos vestígios desse mundo onírico em um lugar distante, semelhante a uma memória ainda não vivenciada. Em sete narrativas interligadas por perdas de vários os tipos – sentimentais, físicas, futuras e passadas –, Homens sem mulheres dá voz a um universo que não parece mais existir: um mundo distante, dominado pelo jazz, sonhos perdidos e rostos caídos.
Nascido no Japão em 12 de janeiro de 1949, Haruki Murakami consolidou-se uma das vozes narrativas mais conceituadas das últimas décadas. Seus romances e contos formam um estranho universo em que o vazio existencial se expande e ressoa na mistura do real e do fantástico, característica demonstrada de forma magistral em Crônica do Pássaro de Corda (1994). Após se formar na Universidade de Waseda – onde dedicou-se, sobretudo, aos Estudos Teatrais –, Murakami abriu um pequeno bar de jazz chamado Peter Cat, o qual administrou durante oito anos ao lado de sua esposa, Yoko, e chegou a traduzir para o japonês obras de seus autores favoritos: J.D. Salinger, F. Scott Fitzgerald e Raymond Carver.
Com seu primeiro livro, Ouça a canção do vento (1978), ganhou o Prêmio Gunzo de Novos Escritores, recebendo posteriormente o Prêmio Franz Kafka e o Prêmio Jerusalém. Atualmente, o autor ostenta uma obra traduzida para mais de cinquenta idiomas; mas, diferente de seus trabalhos pregressos, Homens sem mulheres tem menos elementos surreais, e mantém os pés na realidade – mesmo que em vários momentos tente viajar através dos sentimentos.
Na fotografia, há o conceito de “espaço negativo”, que diz respeito ao entorno daquilo que está devidamente enquadrado na imagem, compondo o assunto sem necessariamente ser o assunto. Neste livro, o espaço negativo são as mulheres, e, como seu título pode anunciar, retrata os relacionamentos amorosos e suas perdas, refletindo sobre isso através de uma visão muitas vezes idealizada que Murakami mantém ao retratar o gênero feminino, sempre através da perspectiva masculina – até mesmo em Sherazade, única narrativa em que a protagonista é uma mulher, mas cujo foco está na narração em terceira pessoa do autor. Mesmo sem juízo de valor, Homens sem mulheres parece retratar mulheres que invadem a vida dos homens e desaparecem – às vezes por opção, às vezes por força maior –, e deixam uma marca na vida daqueles que as amam.
Entretanto, o escritor japonês reflete mais sobre a solidão do que sobre os relacionamentos, especificamente, o que dá margem a interpretações mais amplas sobre o contexto da obra. Não espere, em Homens sem mulheres, um clímax espalhafatoso em determinado momento. É como se todos os contos se desenrolassem em seu estado permanente, cuja construção se estabelece através das várias camadas narrativas.
Na premiada adaptação cinematográfica de Drive My Car – conto em que um ator precisa de um motorista e se espanta ao encontrar uma mulher para o cargo –, esses aspectos foram contemplados: a construção lenta da narrativa, as diversas camadas da história e a aura acinzentada que perpassa a vida, as memórias e a cidade dos personagens. O resultado, além do Oscar de Melhor Filme Internacional, foi a consolidação do longa como um clássico imediatamente depois de seu lançamento.
“Kafuku pensou em dormir um pouco. Dormiria profundamente por um tempo e acordaria. Dez ou quinze minutos, algo assim. Em seguida voltaria ao palco para atuar. Debaixo dos holofotes, declamaria as falas determinadas. Receberia aplausos e a cortina se baixaria. Por um momento, se afastaria de si mesmo, e voltaria. Mas, para ser exato, não voltaria ao mesmo lugar de antes.”
Ao longo de Drive My Car, vemos dois personagens, Kafuku e Misaki, que se complementam através da solidão compartilhada, mas que manifestam seus sentimentos de formas bastante distintas. Kafuku foi proibido de dirigir depois de um acidente no qual foi encontrado bêbado, e por essa razão a companhia de Teatro pela qual está interpretando Tio Vânia, de Tchékhov, decide pagar pelo seu transporte durante a temporada de exibições. Ele é forçado, portanto, a encontrar um motorista – inicialmente havia planejado um homem para o cargo –, mas se surpreende ao encontrar Misaki, que foi indicada através de um conhecido.
Conforme os dias se passam, a curiosidade de Misaki aumenta, devido ao silêncio avassalador de Kafuku durante as viagens. Ela quer saber por quais razões ele não possui amigos, então inicia o contato, fazendo-o revelar que, na verdade, estabeleceu uma amizade com um dos antigos amantes da sua esposa, morta há algum tempo. Aos poucos, o viúvo começa a ditar mais detalhes sobre sua vida íntima, e chega a contar que sempre soube das traições e sua ex-esposa também tinha consciência de que não havia mais segredo, e mesmo assim ninguém dizia nada um ao outro, pois “todos nós interpretamos um papel”.
Enquanto Kafuku se reveste de uma aura de “homem racional” e luta consigo próprio para entender os eventos ocorridos, Misaki se afunda no trabalho e na introspecção para tentar esquecer seus próprios problemas, alimentando uma visão negativa de si mesma em consequência das situações em que foi submetida anteriormente (o abandono paterno e as violências que sofreu de sua mãe). De forma lenta, Haruki Murakami constrói uma narrativa que evoca magistralmente a importância do passado para moldar nossas características atuais, nas quais sempre carregamos as mágoas ancestrais no horizonte de nossas escolhas.
Quando Homens sem mulheres foi publicado pela primeira vez, em 2014, Murakami já detinha prestígio e reconhecimento internacional, principalmente pela já citada Crônica do Pássaro de Corda – elogiada pelo conservador crítico Harold Bloom (1930-2019) – e Kafka à beira-mar (2002). Mas apesar de Murakami ser um dos autores mais conceituados nos dias atuais, ainda convive à sombra dos escritores subjugados – por uma parcela ainda elitista – como “autor de entretenimento”.
Essa é uma categoria muito utilizada para tentar designar obras que não exijam esforço intelectual, que oferecem somente um espairecimento ou fuga da vida cotidiana, mas que nada criam de permanente às nossas vidas, como os grandes clássicos atemporais realmente fazem. A verdade é que qualquer coisa pode ser intensa se você olhar bem, e o fato de uma obra literária não ter sido reconhecida por sua dimensão não declarada evidencia mais suas qualidades como leitor do que as qualidades da obra. Existem livros ruins, todavia é preciso admitir a posição pessoal e imprescindível à afirmação: não representa a totalidade dos leitores da obra, e pode realmente trazer revelações profundas e aumentar o entendimento do mundo de certas pessoas.
“De uma forma ou de outra, você também vai ser um dos homens sem mulheres. De repente. E, uma vez que você se tornar um dos homens sem mulheres, a cor da solidão se impregnará no seu corpo. Como se fosse uma mancha de vinho tinto em um tapete de cor clara.”
O exercício literário, de alguma forma, tem a ver com caminhar por consciências alheias, com entender e compreender as angústias e segregações ligadas ao racismo na leitura de uma obra de James Baldwin, Toni Morrison ou Carolina Maria de Jesus; analisar, através da obra de David Foster Wallace, a dimensão solitária a qual somos submetidos devido a enxurrada de publicidade vazia e interesseira que recebemos diariamente; vislumbrar a longa caminhada dos dias como inerte e indiferente a nós, como Albert Camus observou; tentar se colocar no lugar de um indivíduo com problemas de vícios de todos os tipos ao ler um romance de William S. Burroughs; e ver, de alguma forma, o núcleo cinza dos dias nos contos que Murakami redige em Homens sem mulheres. De algum modo, tudo isso também tem a ver com gerar empatia.
Contudo, qualquer debate sobre Arte e suas qualidades está sujeito a um emaranhado de problemas, sempre resvalando em questões de gênero, desigualdade social e elitismo. Talvez seja interessante perceber o quanto a visão publicitária tende a reduzir uma obra ficcional, uma vez que seu foco, quase sempre, está na projeção de um sentimento específico no leitor, geralmente a catarse. Quando se lê um romance cujo intuito é, deliberadamente, a criação de um ambiente em que se consolide o quanto determinado autor é genial e meu-Deus-olhe-o-que-ele-está-fazendo, o resultado é dificilmente o esperado. Isso porque obras artísticas são abertas à interpretação, como Umberto Eco constatou, mas principalmente porque, depois que o escritor termina e publica o livro, se torna apenas uma forma de linguagem, capaz de gerar sentidos distintos em cada um. Murakami parece ter consciência disso, e por essa razão suas histórias têm as descrições narrativas como ponto principal.
O estilo narrativo de Murakami se estabelece através de uma prosa simples, e não há qualquer inventividade linguística em seus escritos. O ouro do autor está mais no seu domínio narrativo do que em qualquer outra coisa, cuja característica principal é sua descrição minuciosa e expositiva na medida certa, sem entregar demais e ainda assim permitindo que o jogo ficcional se consolide através da imaginação dos leitores. O que torna seus livros tão atraentes é a possibilidade de largá-los e depois retornar até eles com a consciência de que haverá, no mínimo, uma boa história a ser lida, sem a necessidade de se lembrar daquilo que leu anteriormente – talvez por isso haja confusões sobre o público que Murakami quer realmente atingir.
Todavia, obras também podem ser contaminadas pela visão industrial. Desse modo, surgem as obras possivelmente ruins em sua essência, trabalhos cujo aspecto fundamental seja a escalada comercial e venda em massa, o interesse puro e genuíno em se transformar em escritor como um gerente que administra uma empresa, sem considerar qualquer aspecto relacionado à Arte. Talvez o choque primordial ao ler os contos de Murakami seja a compreensão de que as coisas se desenvolvem lentamente – como em Kino, uma das maiores narrativas da coletânea e, consequentemente, uma das mais demoradas –, pois não há pressa no autor em estabelecer a ambientação de suas histórias, agindo em contraste ao mundo frenético da contemporaneidade.
“Os galhos de salgueiro continuavam ondulando ao vento do início de verão. Em um pequeno quarto escuro no profundo interior de Kino, a mão quente de alguém foi estendida e tentou pousar sobre a dele. Com os olhos fortemente cerrados, Kino sentiu o calor dessa mão e sua espessura macia. Era algo que fora afastado dele havia muito tempo. Sim, estou magoado. Muito, profundamente, Kino disse a si mesmo. E chorou. Nesse quarto escuro e silencioso.”
À medida que a coletânea avança, as histórias assumem um caráter mais sombrio. Em Órgão independente, conhecemos o Dr. Tokai, um cirurgião plástico de 52 anos que nunca foi casado nem nunca desejou se casar. Ele se relaciona com diversas mulheres, sem se entregar totalmente a nenhuma delas, mas, quando se apaixona de fato, tudo se transforma em uma calamidade. Surge, através das diversas metáforas deixadas como pistas na narrativa, a possibilidade de entender o amor como uma doença incurável e violenta.
Com seu título retirado de um conto de Ernest Hemingway, Homens sem mulheres dá vida a indivíduos que optam pela solidão numa tentativa de afastar o sofrimento, mas que, inevitavelmente, intensificam as duas sensações. Ao contrário dos personagens de Hemingway, excessivamente preocupados com virilidade – seres quebrados que encontram vazão no afeto, sem deixar que isso mude seus próprios valores –, os personagens de Haruki Murakami não conseguem identificar os motivos da dor. A parte difícil é constatar, indigestamente, que não possuímos controle sobre quase nada – muitas vezes, nem sobre nós mesmos.