O sofrimento transcende o tempo em Regresso a Reims (Fragmentos)

Fotografia colorida de uma família francesa. Na foto, da esquerda para a direita, há um homem de cabelos grisalhos, vestindo terno cinza e camisa branca, de braços cruzados e boca semi-aberta; depois, há um homem com cabelos pretos lisos, sorrindo de boca fechada, vestindo uma blusa azul, camisa branca e uma calça azul. Também está de braços cruzados. À sua esquerda, há uma mulher de braços cruzados, vestindo um vestido de cor verde, com uma bolsa em cor marrom pendurada em seu braço esquerdo. Ela possui um cabelo liso de cor preta, que cobre suas orelhas. Depois, há uma menina de cabelo castanho liso, utilizando um vestido de cor verde com bolinhas brancas. Ela está com os dois braços cruzados atrás das costas. Essas 4 pessoas são brancas. Ao fundo estão alguns pessoas caminhando, com bandeiras com as cores da França expostas.
Integrando a seção Perspectiva Internacional da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Regresso a Reims (Fragmentos) é um recorte da história da classe média na França [Foto: Les Films de Pierre]
Bruno Andrade

Parte considerável dos conflitos geracionais consiste em renegar a vida pregressa do indivíduo que está bem diante de você, comumente associado a alguém antiquado à época. Essa ausência de visão pode transformá-lo em um ser suportável, mas diminuí-lo como ser humano. Pelo menos essa é a lição que tiramos de Pais e Filhos, de Ivan Turguêniev. A essa postura, o diretor e roteirista Jean-Gabriel Périot se opõe ferozmente, e joga luz sobre a história dos trabalhadores franceses em seu documentário Regresso a Reims (Fragmentos), exibido na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.   

O longa é uma adaptação do livro de memórias Retorno a Reims, escrito pelo filósofo Didier Eribon. Em decorrência das experiências de vida narradas nas páginas, principalmente o testemunho da infância da mãe de Eribon, a obra teve um grande impacto na França quando publicada, em 2009, e tornou-se um best-seller. Ao longo dos escritos, o autor traça um regresso metafísico a Reims, comuna francesa onde cresceu, denunciando a opressão das minorias no país ocasionada pelo uso político da pobreza por aqueles que idealmente deveriam atacar essas estruturas de dominação.

Propiciando reflexões através de imagens pessoais e de época, que vão desde os anos 1950 até os dias atuais, o filme de Périot opta pelo ensaio, adaptando livremente os capítulos originais. Com a narração de trechos do livro a cargo da atriz Adèle Haenel — os ‘Fragmentos’ a que se refere o título —, alternadamente aos testemunhos dos trabalhadores, o documentário transforma o particular em universal, apontando para a vasta multidão de negligenciados como protagonistas da história, com as cenas de arquivos denunciando a longa trajetória de abuso e humilhação sofrida por essas classes mais baixas.

Foto do diretor Jean-Gabriel Périot. Ele é um homem branco e loiro, possui olhos verdes, cabelos lisos e rasos e uma barba rala. Ele está utilizando um óculos com lentes transparentes e hastes de cor preta; veste uma camisa branca, um suéter de cor preta e uma jaqueta também de cor preta. Ele está parado olhando fixamente para a câmera, e o fundo da imagem é em cor cinza.
A técnica de mesclar documentos históricos e narrações já foi utilizada por Jean-Gabriel Périot em trabalhos anteriores, principalmente em seus curta-metragens e no longa Juventude Alemã, indicado ao Prêmio César em 2016 (Foto: Les Films de Pierre)

Esse extenso panorama traz evidências de algo previsível: os pais oprimidos transmitem a opressão aos seus filhos, transformando o sofrimento em algo hereditário. O que fica claro é que esse sistema se mantém vivo na contemporaneidade, principalmente quando enxergamos, por exemplo, as visíveis desigualdades no trabalho, além da exploração a qual se submetem os mais pobres, numa tentativa de sobreviver em um mundo que parece ter se esquecido deles — ou que, provavelmente, nunca os considerou. Como diz um trabalhador em um trecho do filme: “ao envelhecer, o corpo do operário exibe a realidade das coisas”.

A deterioração lenta do corpo desses trabalhadores, e a alienação imposta a esses indivíduos, permite enxergar ao passar das cenas que, na realidade, só existem “as classes altas e as classes baixas”, como escreveu George Orwell em 1984. Dar voz aos oprimidos, sem qualquer intervenção, é uma das grandes manobras do diretor. Em alguns momentos, enxergamos a mão de alguém segurando um microfone, mas essa pessoa nunca aparece ou impõe algo aos entrevistados. 

A sequência aparentemente cronológica de imagens mostra os motivos ocultos que levaram ex-comunistas a votarem em peso em pessoas como Marine Le Pen, motivados pelo descontentamento com a hierarquia social, numa tentativa desesperada de consolidar a própria identidade. Conforme o enredo de Regresso a Reims (Retour à Reims, no original) aproxima-se dos tempos atuais, conseguimos vislumbrar ecos de A sociedade do espetáculo (1973), filme de Guy Debord baseado em seu livro homônimo de 1967 — uma das grandes influências de Périot.

Capa do livro Retorno a Reims, de Didier Eribon. Na imagem, há um desenho de um cachorro de cor branca, com duas manchas castanhas em cada um de seus olhos. Ele está deitado sobre um tapete de cor vermelha, com riscos de cor azul, marrom e laranja. O fundo da imagem é cinza. Na parte superior, de forma centralizada, está escrito Didier Eribon, em fonte de cor branca. Abaixo dessas duas palavras, também em fonte de cor branca, está escrito Retorno a Reims.
Capa da obra escrita pelo filósofo Didier Eribon, que inspirou o documentário Regresso a Reims (Fragmentos); o livro é publicado no Brasil pela editora Âyiné, sob tradução de Cecilia Schuback [Foto: Âyiné]
À medida que o documentário chega ao fim, vemos os oprimidos cada vez mais desiludidos com promessas eleitorais vazias. O filme mostra a visão dos trabalhadores sobre políticos de esquerda e direita, pois, durante os anos 1980, aqueles alinhados à esquerda não enxergaram qualquer tipo de avanço em suas vidas, ficando presos a ideais que não lhes entregavam comida na mesa, enquanto facções de extrema-direita tentavam tirar vantagem dessa situação, enganando deliberadamente a população.

O longa de 80 minutos nos emudece e transporta à melancolia em uma simples troca de imagem, visto que as falas dos trabalhadores acompanham sempre um sorriso perdido, com olhares evasivos e afirmações do tipo “é assim que as coisas são”. O poder do documentário de Jean-Gabriel Périot (como também da obra de Didier Eribon) é o de construir, de forma singela, um mosaico para compreender — mesmo que parcialmente — o motivo de certas coisas acontecerem ainda em 2021, como a adesão praticamente inconsciente de classes mais baixas a grupos de extrema-direita. 

Todos querem ter uma vida minimamente decente, e por essa razão são incapazes de enxergar golpes e enganações, tornando-se cegos diante dos fatos. A bem da verdade, esses indivíduos não podem enxergar, pois seus olhos foram deixados em algum chão de fábrica. A principal mensagem deixada em Regresso a Reims é de que a desigualdade social é um dos maiores fracassos da civilização. 

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