Bruno Andrade
Há uma linha tênue entre o Horror e o Terror. Enquanto no primeiro o apreço pelo sobrenatural e sua respectiva negação da realidade são predominantes (lembre-se do “Horror, o Horror!” anunciado pelo agente Kurtz em O Coração das Trevas), o segundo preza pela criação de uma atmosfera repleta de suspense, cuja brincadeira consiste justamente na ausência do mágico, e na dúvida se determinadas situações ocorreram ou se estão na cabeça dos personagens. Na Literatura, há predominância dos textos de terror, e, de forma mais apropriada, trata-se de uma categoria precursora ao suspense psicológico, na qual ambos os gêneros se cruzam quando o assunto é aterrorizar. Em Histórias extraordinárias, uma coletânea de 18 contos traduzidos pelo poeta José Paulo Paes, o leitor encontrará a angústia e a engenhosidade de Edgar Allan Poe, um dos principais inventores do Terror moderno.
São poucas as coisas que se assemelham a auspiciosa — e estimulante — sensação de que estamos sempre um passo atrás do escritor, e essa habilidade é bem desenvolvida nos contos de Poe. Nesse jogo em que somos submetidos, através de figuras de linguagem, gêneros narrativos e estruturas textuais, recebemos a catarse, possibilitada através de uma brincadeira íntima entre leitor e autor. Mas essa graça parte de um pressuposto, no qual estamos sempre observando em suspeita, analisando o mínimo em detalhe, e, de certa maneira, lançando um olhar um pouco mais crítico. No ensaio O conto policial, o argentino Jorge Luis Borges escreve que Edgar Allan Poe inventou esse jogo, e não criou um novo gênero literário, mas sim “um novo leitor, sempre desconfiado”, à espreita de uma revelação.
Mesmo levando em conta o aspecto fundamental da crítica, que é atentar-se à obra — deixando, na melhor das hipóteses, o autor em segundo plano —, torna-se tarefa particularmente árdua não analisar alguns aspectos da vida particular de Poe, observando reflexos em sua obra. Sabe-se que ele foi um homem infeliz, e o conteúdo biográfico sobre o autor, cuja morte precoce — faleceu aos 40 anos — ainda é motivo de teorias, assegura que o contista teve uma vida conturbada, com distúrbios psicológicos e uma marca permanente da ausência paterna. A mãe morreu pouco mais de um ano após o abandono do pai, e Edgar foi morar, ainda aos dois anos, com um comerciante chamado John Allan, que o aceitou, porém se recusou a adotá-lo legalmente; aí surge o sobrenome: Allan Poe.
Embora alguns argumentem que essa ausência dos pais e uma possível inclinação a problemas psicológicos tenham dado origem a seus escritos, sabe-se que Poe foi um jovem inclinado para a Literatura desde muito cedo, e aos 18 anos publicou seu primeiro livro, Tarmelão & Outros Poemas (ainda sem tradução no Brasil). Mas o fato é que, como qualquer um que leu pode afirmar, Histórias extraordinárias é composto por contos poderosos, de enorme profundidade psicológica, mas também muito estranhos. Publicadas originalmente em 15 de fevereiro de 1845, as histórias possuem o medo e a loucura como traços em comum, às vezes de forma conjunta na mesma trama, e seus personagens não conseguem — ou podem — se desenvolver, estando sempre inseridos em espirais temporais.
Esse aspecto evidencia a originalidade de Poe, visto que a maioria dos romancistas da época discorriam sobre as minúcias dos ambientes, com a quase delirante riqueza de detalhes, enquanto o contista norte-americano deixava de lado o moralismo e a extensão, enxugando seus textos e focando no desfecho da história. De modo a sempre considerar a reação do leitor — dispondo rigorosamente seus elementos —, ele construía, assim, a atmosfera para o clímax. Por isso sua escolha pelo gênero: o que poderia prender mais a atenção de alguém que o Terror?
Talvez por essa razão os cenários em Histórias extraordinárias sejam sempre os mesmos castelos sombrios, as mesmas masmorras escuras e os recorrentes personagens misteriosos à beira da loucura. Esses elementos são fundamentais para a apreensão do leitor, que logo de cara percebe um mistério a ser desvendado. Em seus contos, a descrição dos ambientes tem o intuito de construir a atmosfera horripilante, e não é um fim em si mesmo, tendo em vista que auxilia o leitor a compreender os sentimentos do protagonista, que de forma premeditada sente que algo está errado. Ainda assim, elementos físicos misturam-se com a consciência dos personagens, e essa forma pode ser observada no trecho a seguir, retirado do conto A queda da casa de Usher:
“Débeis raios de luz avermelhada coavam-se através das vidraças e das rótulas, servindo para tornar suficientemente distintos os objetos mais proeminentes em torno; a vista, contudo, esforçava-se em vão por alcançar os cantos mais remotos do aposento ou os recessos do teto, abobado e cheio de ornatos. Tapeçarias escuras pendiam das paredes. A mobília era profusa, sem conforto, antiquada, e encontrava-se em estado precário. Muitos livros e instrumentos musicais espalhavam-se ao redor, mas não conseguiam dar nenhuma vitalidade ao ambiente. Senti que respirava uma atmosfera de angústia. Um sopro de profunda, penetrante e irremediável tristeza andava no ar e tudo invadia.”
O que é interessante notar nesse trecho é que a realidade está imposta como um mero jogo de aparências, um produto de consenso. Diferente do real, a realidade é imaginária, pois os artifícios que utilizamos para enxergá-la são possibilitados através de abstrações da consciência. Dessa forma, sabemos que não há possibilidade de se respirar “uma atmosfera de angústia”, mas conseguimos enxergar a afirmação em um cenário real, pois temos conhecimento do medo. Na verdade, não há muitas coisas que distinguem a realidade cotidiana da realidade dos contos de Poe. A diferença é que, em suas histórias, tudo ameaça ser apenas uma perspectiva.
Porém, de forma equivalente à originalidade de Poe, os críticos da época mantiveram o tom conservador em relação às inovações propostas pelo escritor — atitude diferente da que teve o poeta Charles Baudelaire, que saudou a engenhosidade do autor norte-americano e chegou a traduzi-lo para o francês. Essa inovação, observada por Baudelaire, está presente em contos como William Wilson, cuja trama gira em torno de um rapaz que encontra um outro jovem de mesmo nome e aparência física, onde a única diferença entre ambos é o fato do doppelgänger comunicar-se somente por sussurros.
Essa história — que inspirou a obra O Duplo, de Fiódor Dostoiévski, e também aparece com certa frequência em A Trilogia de Nova York, de Paul Auster — apresenta, de forma paradoxal, o interior humano como um outro ser, uma espécie desconhecida e por si só revoltante. Para citar novamente Borges, a história nos remete ao conto O milagre secreto, do livro Ficções (1944). Ambos os textos retratam indivíduos que abandonam a realidade, colocando o tempo em suspenso e deixando de lado qualquer tipo de lógica. Mas, como se sabe, a lógica não é garantia da verdade.
O gato preto, um dos contos mais famosos do livro, traz a noção de anormalidade e uma metáfora para a deterioração do homem, destacada pela violência do protagonista. O gato, que se chama Plutão — mesmo nome do deus dos mortos na Mitologia romana —, é uma possível metáfora na qual a morte vem acertar as contas com o narrador, traçando, ainda, um limiar entre a sanidade e a loucura. Em A carta roubada, considerado o primeiro texto da literatura policial, há a investigação do detetive Auguste Dupin sobre o desaparecimento de uma carta furtada pelo Ministro D., sendo Dupin muito parecido a Sherlock Holmes — e isso não ocorre por acaso, pois Poe foi a influência declarada de Arthur Conan Doyle.
Mais de 175 anos depois de seu lançamento, Histórias extraordinárias ainda apresenta aos leitores de primeira viagem uma profundidade e imersão surpreendentes, mesmo em tempos atuais. A forma envolvente dos contos — seja pelo terror ou pela construção da narrativa — estimula e cativa o imaginário, através de uma escolha exata de palavras e situações. Diferente de William Wilson, o duplo de Edgar Allan Poe é o que restou, definindo a maneira de enxergar a obra desse autor atormentado. Ele é o gênio do conto, o inventor de um novo gênero literário, o mestre do terror, mas, acima de tudo, é o escritor.