Vitória Lopes Gomez
Comparada a grandiosidade que a Marvel se acostumou a entregar, a premissa de Gavião Arqueiro soa até ordinária. Longe do Multiverso (só aparentemente), das loucuras intergalácticas de um certo titã roxo, e até da linha da fronteira e das ameaças internacionais, uma Nova Iorque decorada com pisca-piscas, guirlandas e papais noéis é palco para Clint Barton… Bem, quase perder as comemorações natalinas. Ao longo dos seis episódios, a quinta série do estúdio no Disney+ introduz às telas personagens inéditos, resgata rostos conhecidos, conecta narrativas passadas e abre portas para novas. Com tudo isso, se o Vingador menos extravagante (como ele mesmo admite) precisa de uma marca pessoal mais chamativa, Gavião Arqueiro lhe dá a chance de sair das sombras e conquistar a luz ao lado da árvore de Natal.
O espaço no holofote, no entanto, é dividido com Kate Bishop, a verdadeira estrela de Hawkeye. Na trama, é a arqueira adolescente que vai atrás de encrenca e obriga Clint a ajudá-la. Ela, que perdeu o pai na Batalha de Manhattan do primeiro Vingadores e foi salva pelo Gavião, idolatra o herói e dedicou-se para seguir seu exemplo. Quando começa a suspeitar do futuro padrasto e decide investigá-lo, Kate se vê no meio de leilões ilegais e roubos, vestindo o traje, sendo confundida com um foragido Ronin, e sendo caçada pela infame Máfia dos Agasalhos. Na semana mais bonita do ano, seu ídolo só queria passar o Natal com os filhos e a esposa, mas adia os planos para proteger a jovem das consequências de sua antiga armadura.
Enquanto Wanda cria uma vizinhança alternativa e Loki viaja pelas dobras do tempo, a missão de Clint é chegar em casa a tempo do Natal. O Vingador está com a aposentadoria encaminhada e quer passar o feriado com os três filhos e a esposa, Laura (Linda Cardellini), que voltaram à vida com a derrota de Thanos. Apesar de ter permanecido um mistério por boa parte de sua década no MCU, o personagem revela-se um “homem família”, e, no pós-Blip, quer deixar para trás sua carreira como herói – e como vilão. Entre jantares com as crianças e passeios ao espetáculo mais requisitado da Broadway, Rogers: O Musical, Clint descobre que Ronin está de volta às ruas. Ou, pelo menos, é isso o que a Máfia dos Agasalhos acha.
Diferente de sua persona nas histórias em quadrinhos, Gavião Arqueiro continua com o retrato carrancudo e taciturno de Barton. A série respeita a construção do personagem e sua origem nos cinemas, mas, mais do que nunca para ele, se aproxima das histórias originais iniciadas nos gibis. Fragmentado e esparso entre capítulos de outros heróis da Marvel, o Gavião Arqueiro ganhou sua própria sequência quando o autor Matt Fraction propôs à empresa mostrar o que ele faz quando não está com os Vingadores. Junto de David Aja, que concebeu a identidade visual do personagem, e dos diferentes ilustradores recrutados para cada episódio, os idealizadores da proposta criaram um herói sem poderes divertido, sarcástico e irônico, pouco semelhante ao do Universo Cinematográfico.
Mesmo que a essência e a origem de Clint como vigilante não sejam fiéis às HQs, a Marvel ensaia cada vez mais a aproximação com essas, sem contrariar o que já consolidou. Se, nos filmes, o herói destrói a caricatura dos gibis e chega a ser tedioso com sua cara fechada, em Gavião Arqueiro, se destaca graças à sua (futura) outra metade do arco e flecha, Kate Bishop. Ela também tem um nascimento como heroína diferente nos impressos, digno e felizmente contado em sua própria série ilustrada, mas sua personalidade ganha um retrato à altura no seriado lançado semanalmente no Disney+.
Interpretada pela versátil e justamente requisitada Hailee Steinfeld, a jovem – na época, uma criança – é resgatada por Clint na Batalha de Manhattan, em que Loki reduziu a cidade a escombros. Anos depois, mais velha e com habilidades tão louváveis quanto às de seu salvador, ela acidentalmente veste um dos trajes mais procurados de Nova Iorque, ao procurar um disfarce para investigar melhor o noivo da mãe (Vera Farmiga), Jack Duquesne (Tony Dalton). Com sua cabeça à prêmio e a proteção de um culpado Clint, ela aproveita para engatar em uma mentoria com o Vingador.
Uma das produções da Marvel mais carregadas em diálogo até então, Gavião Arqueiro constrói a parceria entre Clint Barton e Kate Bishop sem pressa. Ao contrário do veterano, a novata segue à risca o seu charme nas HQs: tão carismática, ácida e extrovertida como sua versão original, a heroína encarnada por Steinfeld se contrapõe ao mau humor do Barton de Jeremy Renner, que pouco mudou de expressão em mais de uma década. Somando às polêmicas e acusações que rodeiam o ator, até o personagem acabou manchado, precisando desesperadamente de uma redenção.
Já nas histórias em quadrinhos, que não chegaram a ser adaptadas, mas serviram como inspiração para a temporada criada por Jonathan Igla, ambos compartilhavam de uma personalidade parecida, uma dupla dinâmica divertida e descontraída. Já na série, unir os dois polos opostos do mesmo arco, surpreendentemente, funcionou. Aos poucos, a simpatia de Kate conquista Clint – o público foi conquistado logo de cara –, e a amizade/mentoria/parceira se torna o maior atrativo de Gavião Arqueiro, transformando até o enredo de investigação e drama em algo mais envolvente. Em meio às frenéticas lutas e às cômicas discussões dos dois, tem até espaço para cuidarem de Sortudo, o Pizza Dog resgatado pela jovem, outra referência dos quadrinhos nas telas.
Os arqueiros, porém, não são os únicos destaques, tampouco as únicas surpresas. Como é de praxe da franquia encabeçada por Kevin Feige, os seis episódios abrem espaço para novos personagens, todos peças do gigantesco universo Marvel, e relembram outros. Logo de cara, a conexão de Kate com Os Vingadores, primeiro filme da saga dos heróis mais poderosos da Terra e que inicia esse elo, e a emotiva lembrança de Natasha, emblemática e essencial no fechamento do arco deles, mostra que a empresa não cria, mas transforma, encaixa, realoca e reaproveita o que já tem.
Um exemplo é Maya Lopez. Ela é figura recorrente nos quadrinhos do Demolidor como a heroína Echo, e, no MCU, faz sua primeira aparição em Gavião Arqueiro. Na série, Maya ainda não adotou seu codinome e começa como uma criminosa: comandante da Máfia dos Agasalhos, ela persegue Ronin atrás de vingança, e, no processo, rende as melhores sequências de ação com os protagonistas. Interpretada ferozmente pela estreante Alaqua Cox, a personagem também aprofunda a produção – e Clint Barton: tanto Echo como sua intérprete são pessoas com deficiência auditiva, e se comunicam através da língua de sinais. Além da representatividade que leva às telas, afinal ela é uma das poucas PCDs retratadas pela Marvel, Maya abre espaço para a série explorar as consequências dos anos de atuação do Gavião pela S.H.I.E.L.D.. E a perda de parte da audição, que o levou a usar um aparelho auditivo, é somente uma delas.
Outra aparição estrondosa é a de Yelena Belova, recentemente introduzida ao Universo Cinematográfico em Viúva Negra. Vivida pela encantadora Florence Pugh, a irmã caçula de Natasha Romanoff viaja a Nova Iorque em busca de um acerto de contas para a ex-Vingadora, e protagoniza alguns dos melhores momentos da série ao lado de Kate. As duas esbanjam química até nas cenas de combate, e a nova Viúva Negra ainda desembrulha um dos maiores plot twists no enredo. Nisso, a Marvel prova que realmente não deixa ponta solta, conecta os personagens e linhas narrativas de Gavião Arqueiro às de seus outros produtos e retorna com um dos melhores vilões das telas, o Rei do Crime (Vincent D’Onofrio). Tudo isso abrindo espaço para ainda mais produções e histórias.
Mesmo com todas as referências e conexões que Gavião Arqueiro evoca, a produção, dirigida por Rhys Thomas e Bert & Bertie, triunfa pela sua mundanidade (há algo mais ordinário que “Máfia dos Agasalhos”?). Sem aula sobre o Multiverso, sem ameaças intergalácticas, realidades alternativas regadas a CGI ou embates no topo de aeronaves, a série aproveita sua curta e divertida primeira temporada para focar em Clint e Kate. Eles lutam com gangues e mafiosos, constroem a relação mentor-aprendiz, se questionam quanto ao papel do herói e quem pode exercê-lo, mas, ao final, em uma aconchegante Nova Iorque decorada para o Natal, só querem chegar em casa a tempo de abrirem os presentes.
Agora, o futuro de Clint Barton nas telas da Marvel é um mistério. A série acena aos quadrinhos e a todos os desdobramentos que abre, e recupera a imagem desgastada do Vingador menos chamativo. Fora da sombra dos supersoldados, deuses e Hulks, o Gavião conquista seu próprio holofote ao lado de sua nova parceira. Quanto ao merecido descanso que tanto almejava… Se optar por isso, o Gavião Arqueiro já pode se aposentar. O arco e flecha estão em boas mãos com a Gaviã Arqueira.