Vitor Evangelista
A estreia de Pavel Ganin na direção vem para esclarecer algo: os vídeos ASMR são insuportáveis, independente do idioma. O filme debate outras questões, é claro, mas como alguém que detesta esse tipo de conteúdo, é bom dizer logo de cara. Parte da Competição Novos Diretores, na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Gatilho (Триггер) foi disponibilizado de graça na plataforma do Spcine Play, em parceria com o Looke.
O filme russo se centra na esquisita relação entre uma youtuber e um fã. Ela, Ksenia, faz vídeos nesse estilo ASMR para a plataforma, com um público fiel e muitas câmeras e microfones para gravar esse fetiche sonoro e sensorial. Interpretada por Elena Chekmazova, a mulher carrega um trauma no peito, algo do passado que causa impedimento na hora de criar laços com os demais.
Ele, Philip, trabalha com áudio num estúdio de gravação, e é fascinado pelo canal de Ksenia. Logo de cara já marcando um encontro com a mulher, o personagem de Alexei Maslodudov é tão silencioso e misterioso quanto sua ‘cara-metade’. Gatilho se beneficia da falta de estribeiras de sua dupla de desajustados, que não se sente acanhada na hora de questionar um ao outro.
Ao passo que essa língua ácida e mente aberta muito beneficia a agilidade da trama, o roteiro assinado pelo diretor não gosta de falar muito. Encontramos um texto seco e, na mesma medida, frio, o que inevitavelmente transfere essas características aos seus protagonistas. Gatilho se comporta como um papagaio tagarela para os estereótipos do cinema russo, exaustando esse viés distante e nada acalorado da nação.
É claro que o filme não possui obrigação alguma de sorrir e aquecer sua paleta de cores, assinada por Ivan Solomatin, mas a insistência na apatia é zona de conforto para a arte do leste europeu. Se, aqui no Brasil, nos incomodamos com representações caricatas que variam entre a favela e o sertão, talvez em Moscou eles pensem o mesmo. O controle criativo de Pavel Ganin pode ter sido o fator alienador na hora de construir a misancene, visto que seu nome aparece nos créditos da produção e também da montagem.
Para explicitar esse fetiche do toque à distância, o filme abusa da claridade que cega. Todavia, por mais branca que for a composição visual, ela entra em contraste direto com a escuridão e a tristeza que os personagens carregam. Eles dizem muito um ao outro, mas guardam para si o dobro disso. O choque térmico de expectativas de Philip e Ksenia é o que causa o medo em Gatilho. O filme pode até começar com um ar de suspense mundano, uma possível trama de feminicídio ou loucura, mas o pulo do gato de Pavel Ganin é contar uma história de quebra de expectativa e coração partido.
As cenas de intimidade desse casal edipiano são escritas e filmadas para fugir do ordinário. Gatilho é, nada mais nada menos, do que um vídeo pornográficos de roupas. Os toques que excitam o fator ASMR da obra são mais sensuais que qualquer contato carnal entre quatro paredes, e o diretor tem total ciência disso. Afinal de contas, ele não possuía motivo algum para realizar uma obra clichê ou esquecível. Com isso em mente, o Gatilho de Pavel Ganin sussurra para seu público que a rejeição amorosa é pior que qualquer filme de terror.