Cidade de Deus e Tropa de Elite: as duas faces de uma guerra

Gabriel Leite Ferreira

Fazer cinema no Brasil é uma batalha. De um lado, há a supremacia de Hollywood na maioria das salas de cinema, que domina o gosto do público; de outro, o monopólio da Globo Filmes sobre os lançamentos nacionais mainstream. Superar ambas barreiras é um feito para poucos. Dois aniversariantes desse ano conseguiram tal proeza: Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007).

Mais que companheiras de aniversário, as obras, baseadas em livros, são exemplos do retrato da violência estrutural do Brasil. Sua expressiva aceitação no exterior tem a ver tanto com a qualidade narrativa quanto com a influência do cinema norteamericano – o que passa longe de ser demérito, que fique claro.

Entretenimento x crítica social: o niilismo de Cidade de Deus dividiu opiniões (Foto: Reprodução)

Dirigido por Fernando Meirelles, Cidade de Deus foi um dos responsáveis por colocar o Brasil de volta no circuito internacional após décadas de estagnação. O auge criativo do Cinema Novo nos anos 60 deu lugar a obras pouco acessíveis. A retomada se deu somente na década de 1990, contexto em que se insere a obra de Meirelles. A herança de Glauber Rocha é explícita no conteúdo, focado no desenvolvimento da comunidade Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. A forma, por sua vez, deve mais à violência estilizada de Martin Scorsese e Quentin Tarantino, aspecto que levou críticos a cunharem o termo “cosmética da fome”, referência à estética da fome de Rocha.

Tal oposição é o cerne da película de Meirelles e rendeu admiradores e detratores. Os primeiros aclamaram o primor técnico do longa e a irretocável narrativa; os últimos criticaram a mescla de denúncia e entretenimento, bem como a violência gráfica. Mas é justamente no equilíbrio entre crítica social e entretenimento que reside a grandiosidade de Cidade de Deus. As pontuais doses de humor na trama contada por Buscapé (Alexandre Rodrigues) humanizam os personagens e conferem agilidade e fluidez à narrativa concatenada ao estilo de Pulp Fiction (1994). Por meio de um flashback que perpassa as décadas de 60, 70 e 80, Buscapé introduz personagens cujas histórias se entrelaçam de diversos modos. Essa escolha evita estereótipos e dá o foco da crítica de Meirelles: o ciclo da violência nas periferias brasileiras.

Meirelles retrata o abismo entre a classe média e os mais pobres, mas sem cair em estereótipos (Foto: Reprodução)

Buscapé é um jovem aspirante a fotógrafo que se mantém fora desse ciclo, apesar de se relacionar diretamente com seus agentes. Ele é o cronista da Cidade de Deus, um narrador-personagem que não julga moralmente seus colegas criminosos. Em certo grau, representa o diretor, que não tem o mais remoto contato com o mundo do Trio Ternura, de Bené (Phellipe Haagensen) e de Zé Pequeno (Leandro Firmino da Hora) e por isso se abstém. A distância que Meirelles toma dos sujeitos é fruto do profundo abismo entre classe média e classe baixa, abismo em que nós, espectadores, também nos encontramos.

Percebi que nós, da classe média, não somos capazes de enxergar o que está na nossa cara. Estado, leis, cidadania, polícia, educação, perspectiva e futuro são temáticas abstratas, mera fumaça quando vistos do outro lado do abismo. – Fernando Meirelles

Vem daí a característica mais marcante do longa: o niilismo. A crítica social, apesar de contundente, não se conclui com uma perspectiva otimista do futuro, mas com o prolongamento do ciclo nocivo que se inicia na primeira parte do filme. Isso marca vários personagens da película, mais especialmente o traficante Bené, que tem seus planos de abandonar o crime frustrados por um assassinato, e o cobrador de ônibus Mané Galinha (Seu Jorge), que se vê obrigado a entrar no jogo depois de ter sua família massacrada por Zé Pequeno. Ética, moral e caráter são postos de lado em prol de uma estrutura viciosa já sem começo, meio ou fim. “Depois de um ano, parecia que ninguém mais se lembrava de como é que tudo tinha começado”, diz Buscapé em off enquanto tomadas frenéticas da guerra do tráfico incendeiam a tela.

Capitão Nascimento: heroi ou vilão? (Foto: Reprodução)

Tropa de Elite, de José Padilha, também não ilude o espectador com ideias de redenção. A película traz a mesma estrutura cíclica de Cidade de Deus, mas tem como sujeito o outro lado da guerra: a Polícia Militar, mais especificamente o Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE). Nossa porta para a realidade dos PMs é o capitão Nascimento (Wagner Moura), que, ao contrário de Buscapé, é parte integrante de um sistema extremamente autoritário – mas anseia pelo dia em que poderá deixar seu posto. Nascimento é, também, um narrador mais estereotipado (gírias e frases de efeito são recorrentes), o que não impede Padilha de dar forma a um personagem notavelmente esférico: de um lado, o capitão truculento; de outro, o pai afetuoso de um recém-nascido. Não à toa, seu colapso psicológico parece iminente em várias passagens do filme.

É possível traçar um paralelo entre o capitão e Zé Pequeno, duas figuras brutais na superfície, mas com camadas diversas quando observadas de perto. Zé Pequeno é apresentado como amoral desde a infância e seus episódios violentos só aumentam no decorrer da obra. Mesmo assim, Meirelles reserva momentos pontuais de sensibilidade para o criminoso, ainda que a redenção não venha. A chegada do primogênito não faz de Nascimento um policial mais moderado, muito pelo contrário; mas não deixa de ser tocante a expressão de desespero e impotência que toma conta dele em momentos cruciais da trama.

Impotência que também acomete o aspirante Mathias (André Ramiro). Ele ingressa na Polícia Militar como um homem justo para, ao final do filme, tornar-se uma máquina de matar tal qual seus superiores, trajetória semelhante à de Mané Galinha. Merece nota o fato de ele cursar faculdade de Direito e tentar se inserir num círculo de amigos de classe média. Mathias logo percebe a impossibilidade; basta ele revelar que é PM e os atritos são instantâneos. Seu monólogo na parte final – “Bando de burguês safado!” – é curto, mas simbólico: o abismo entre classes de que Meirelles estava ciente quando rodou Cidade de Deus também está aqui, escancarado.

No caso do filme de 2002, essa problemática ultrapassa a obra em si. O elenco é quase totalmente formado por moradores de comunidades do Rio de Janeiro, selecionados através da escola de atores montada exclusivamente para o longa. Se por um lado a escolha deu verossimilhança à trama, por outro suscitou questionamentos. O documentário Cidade de Deus – 10 anos depois (2013) mostra a vida pós-estrelato de alguns dos envolvidos, e não há surpresa: poucos deram segmento à carreira, sendo Seu Jorge uma notável exceção. Por quê? Seria falta de talento? Ou a sombra de uma grande estreia? As variáveis são muitas, mas é fato que Hollywood é um ambiente essencialmente branco. É lamentável saber que Cidade de Deus foi o filme brasileiro com mais indicações ao Oscar – quatro categorias – e, ao mesmo tempo, parte de seu elenco não saiu do mundo do crime. É o mesmo ciclo, mas sem o glamour da ficção.

Tropa de Elite ganhou o Urso de Ouro de melhor filme no Festival de Berlim, em 2008. Taxado de fascista por alguns críticos, adentrou o imaginário nacional com força, a ponto de o capitão Nascimento ser elevado ao posto de herói por parcela do público. Vê-se aí um problema de interpretação causado pela violência estilizada. O diretor não mostra os abusos e as sessões de tortura comandadas pelo capitão como forma de retratá-lo como herói, muito pelo contrário: sua intenção é justamente denunciar a truculência da Polícia Militar. No entanto, a maioria do público preferiu endeusar o personagem de Moura, e dá-lhe memes e referências.

Desse mesmo modo, a extrema violência de Cidade de Deus serve, a princípio, para chocar. No caso de Meirelles, a denúncia não é tão latente, e ao decorrer do filme o derramamento de sangue chega a um nível em que já não sabemos qual é exatamente o objetivo do diretor. Críticas quanto a esse aspecto foram recorrentes à época, mas, no geral, Cidade de Deus foi um sucesso de crítica e de bilheteria. Tanto que aumentou a procura pelo chamado reality tour nas favelas do Rio de Janeiro. O voyeurismo do diretor chegou ao público.

As reações controversas às duas películas dizem mais sobre a sociedade brasileira que sobre os filmes em si. O Brasil não é uma nação. Ele foi construído e se mantém a partir de profundos abismos sociais e econômicos. Os dilemas éticos da arte existem e devem ser discutidos; contudo, é inegável o valor dos dois filmes como retratos das mazelas do país, infelizmente mais atuais que nunca.

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