Em Estado elétrico, Simon Stålenhag ilustra um apocalipse contemporâneo

Estado elétrico, graphic novel de Simon Stålenhag, está em adaptação para os cinemas pela Netflix (Foto: Companhia das Letras/Quadrinhos na Cia/Arte: Bruno Andrade)

Bruno Andrade

Somos rostos em meio à multidão, mas dificilmente pensamos naquilo que torna a multidão real. Sistemas de armas termonucleares coexistem com comerciais de refrigerante em um ambiente dominado pela publicidade, no qual é possível enxergar apenas pequenas frações de uma realidade mais ampla, dominada pelo inalcançável. Na tentativa de reunir o maior número de consumidores sob as armas da especulação, da alienação e de tudo que o dinheiro pode comprar, os donos do poder tecnológico resumem a grande trama neoliberal da contemporaneidade: tentar concentrar o máximo de atenção e especulação às empresas, às redes sociais e aos produtos. É sob esse contexto que Estado elétrico (2017), de Simon Stålenhag – lançado no Brasil em Maio deste ano pelo selo Quadrinhos na Cia da Companhia das Letras, sob tradução de Daniel Galera – ganha novos e assustadores contornos.

Um dos livros recebidos pelo Persona na parceria com a editora, Estado elétrico traz uma trama que se inicia em 1997, quando a Mode 6, óculos de realidade virtual da empresa ficcional Sentre, já somava 1 ano de inauguração. De forma nostálgica, Stålenhag tenta retomar o que, para muitos, foi o fim de uma era. Na Música do final dos anos 1990, o movimento grunge já parecia alertar para um início tecnológico cada vez mais opressivo – essa foi uma das cruzadas de Kurt Cobain, que tinha consciência de estar em uma batalha perdida desde o início, visto que as gravadoras transformaram suas falas anti-sistema em slogans para vender mais discos do Nirvana.

“Você tem dificuldade de aceitar que tudo aquilo que você é – todos os seus pensamentos, experiências, conhecimentos, gostos e opiniões – precisa existir dentro do seu crânio” (Foto: Companhia das Letras/Quadrinhos na Cia)

Nos Estados Unidos retratado pelo artista de origem sueca – que poderia ser apenas uma das realidades alternativas de Black Mirror –, as montanhas e paisagens naturais são descontinuadas por naves alienígenas, robôs disformes e indivíduos semi-conscientes, visivelmente controlados por uma força superior que se esconde por trás dos óculos de realidade virtual, tudo isso composto dentro de um ambiente tecnocrático, retro-futurista e melancólico. Em certas imagens, o sentimento de claustrofobia parece dominar – por todos os cantos das ilustrações, não parece existir alternativa.

Indicado ao Prêmio Arthur C. Clarke em 2019, Estado elétrico (ou Passagen, no original da língua sueca) fica no limiar entre o livro ilustrado e o romance gráfico, com grandes painéis que nem sempre vêm acompanhados de textos claros. A bem da verdade, o livro parece ser um artefato quase contemplativo, retirado diretamente da distopia que pretende retratar, embora essa aura distópica das ilustrações de Simon Stålenhag dialogue com os universos de “tecnologia sucateada” do cyberpunk, cujas ilustrações trazem similaridades aos jogos de videogame com temática similar, como a série Dead Space ou Watch Dogs (2014). Contudo, a trama ainda gira em torno de uma jovem (Michelle) e seu pequeno robô, que seguem rumo ao Oeste em uma missão de resgate, no melhor estilo A estrada (2006), de Cormac McCarthy.

“Você sabe como o cérebro funciona? Faz alguma ideia do que sabemos a respeito de como o cérebro e a consciência funcionam? Estou falando de nós, humanos” (Foto: Companhia das Letras/Quadrinhos na Cia)

Toda a distopia parece ser um retrato de tempos atuais, e em Estado elétrico não é diferente. As liberdades individuais, gradualmente cooptadas por indústrias e campanhas publicitárias, deram origem a um mundo de pesadelo: as paisagens virtuais se movem por um sistema no qual tecnologias sinistras, ameaças nucleares e sonhos consumistas foram destruídos pela queda das instituições. Como Stuart Hall aponta em A identidade cultural na pós-modernidade (1992), esse é justamente um dos motivos dessa “crise de identidade” contemporânea. A descentralização dos indivíduos fez com que os seres perdessem o sentido de si, tornando-se relativos e regidos por uma subjetividade egoísta (“somente o ‘Eu’ importa”).

Nossas concepções de passado, presente e futuro foram alteradas por um tipo de “presente contínuo”, que, como Mark Fisher escreve em Fantasmas da minha vida (2014), dão origem a um “lento cancelamento do futuro”. Esse futuro, diferente do que se convencionou a atribuir anteriormente, passou a ser apenas uma variável das infinitas possibilidades apresentadas a nós. Nesse contexto, a ficção e a realidade se alteraram significativamente – a propaganda, o consumo e uma política conduzida por indivíduos caricatos e sem qualquer consciência social são alguns dos exemplos das ficções que regem nosso cotidiano, cujo resultado é o pré-esvaziamento de qualquer resposta original à experiência.

“Talvez você nem coloque isso em palavras, mas nós dois sabemos que está pensando em uma alma arquetípica. Você acredita num fantasma invisível” (Foto: Companhia das Letras/Quadrinhos na Cia)

Muitas das inspirações de Stålenhag vieram de uma viagem de carro feita com sua família pelos Estados Unidos, em 2013 – o ano do boom” do Facebook –, quando várias fotografias que serviram de referência foram registradas. Porém, apesar do título sugestivo, esse “Estado Elétrico” que o artista desenha com um realismo assombroso não segue o padrão de clássicos como 1984 (1949), de George Orwell, em que a opressão é comandada por um governo. Aqui, a cegueira moral é imposta pelo próprio povo, que acredita estar jogando um videogame quando usa capacetes enormes que dão acesso a uma nova realidade virtual. Aos poucos, descobrimos que os neurônios da humanidade estão servindo de alimento a uma enorme inteligência artificial, da qual, por uma incompatibilidade biológica, a protagonista não pode participar.

Indo contra a lógica da indústria cultural, que sempre entrega produtos mastigados e contemplativos – sem forçar o pensamento –, o ilustrador prefere traçar conexões sutis entre uma narração não cronológica e pinturas atmosféricas. Com influência do retrofuturismo e da já citada cultura cyberpunk, as artes ressoam em nomes como Ralph McQuarrie, Syd Mead e o Philip K. Dick de Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968), a inspiração literária de Blade Runner (1982). É também interessante perceber que, durante toda a obra, parece pairar o paradoxo defendido por James Bridle em A nova idade das trevas (2019): quanto mais sabemos sobre tecnologia, menos conseguimos agir. “A tecnologia é a condutora elementar da desigualdade em vários setores”, escreve Bridle.

“Sempre fui fascinado por máquinas, essas ferramentas poderosas que podem tanto fazer o bem quanto o mal”, diz Simon Stålenhag ao jornal Estadão (Foto: Companhia das Letras/Quadrinhos na Cia)

Cheias de detalhes, as artes também tentam conduzir a narrativa de uma perspectiva diferente, cuja temática do autor combina suas próprias impressões da infância às inspirações da ficção científica, resultando em um cenário estereotipado da Suécia com itens futuristas agregados. O artista cria suas imagens utilizando uma mesa gráfica, valendo-se de técnicas e configurações específicas para simular pinturas a óleo (no início, ele tentou fórmulas com tinta guache, mas optou pelos métodos digitais).

Em adaptação para o Cinema pela Netflix, com previsão de lançamento em 2024 sob direção dos Irmãos Russo, com Millie Bobby Brown no papel principal, ao lado de Chris Pratt e Michelle Yeoh, Estado elétrico parece a história alternativa de um lugar que nunca existiu. “O que estamos fazendo não é civilizado, eu sei. Mas sei que também deve ter acontecido com você. Assim como eu, você deve ter acordado um dia e constatado o inevitável: já não vivemos em tempos civilizados”, escreve Stålenhag na obra. Esse é seu segundo projeto adaptado para o Audiovisual; o primeiro foi Tales From the Loop, série lançada em 2020 pelo Amazon Prime Video baseada na HQ homônima de 2015, cujo livro ainda não foi publicado no Brasil.

Nascido em 1984, Simon Stålenhag mistura suas memórias de infância no subúrbio de Estocolmo às paisagens corrompidas pelo capitalismo (Foto: Fredrik Bernholm)

Os textos que acompanham quase todas as imagens parecem ser apenas mecanismos de coesão, algo que transforma a obra em um livro com início, meio e fim, e não apenas um bloco de ilustrações hiper-realistas. Contudo, não se trata de um elemento jogado totalmente ao acaso e a trama realmente converge para uma história coesa, mesmo que não-linear. A protagonista Michelle conta sua trajetória em etapas – às vezes dando aspectos socioculturais de uma sociedade danificada, às vezes se lembrando de um passado pouco distante em que sonhar, de verdade, era possível.

Esse talento extraordinário para narrar – a junção ideal de um texto conciso e imagens profundas – é o mérito de todo o livro. Para além das investigações especulativas desenvolvidas nas páginas de Estado elétrico, a graphic novel é também um artefato poderoso para uma tomada de consciência que, talvez pela forma realista das ilustrações, ganha força como exemplo de um terrível futuro que pode, efetivamente, ser o nosso presente. Ainda assim, o autor nega o estereótipo de futurista. “Não lido com o futuro, não sou futurista. As pessoas mais fracassaram do que obtiveram sucesso ao imaginar o futuro. Eu sou parte da geração que percebeu que jamais teremos carros voadores”, diz Simon Stålenhag em entrevista. Como Fisher escreve em Realismo Capitalista (2009), a propósito de um mundo cego pela lógica neoliberal, “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”.

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