2020 Nunca Mais é o derivado mais óbvio de Black Mirror

Lisa Kudrow, uma mulher loira na faixa dos 50 anos, olha com desdém para a câmera. À sua frente vemos um microfone, e atrás dela a bandeira dos EUA
O filme encontra uma brecha divertida para prever 2021: mutações por conta da vacina e a posse da presidente Harris são dois pontos levantados por 2020 Nunca Mais (Foto: Reprodução)

Vitor Evangelista

Alguns anos atrás, quando as tramoias de Frank Underwood não chocavam tanto quanto as de Donald Trump, percebemos que a modernidade não deve nada aos roteiros de Hollywood. São muitos os fatores que colocam 2020 num radar dramático e narrativo para a ficção se esbaldar. No contexto da pandemia e das eleições norte-americanas, Charlie Brooker e Annabel Jones decidiram que não liberariam uma temporada nova de Black Mirror no momento, mas eles fizeram melhor: optaram por lançar um especial de comédia recapitulando o ano. Eis que surge 2020 Nunca Mais.

É fato que a tradução do ‘especial de comédia da Netflix’ reduz um pouco a carga de sua mensagem. No original, Death to 2020 exprime com mais exatidão o caráter emergencial e execrador do filme. O que, a princípio, já levanta a maior questão de todas: 2020 realmente demandava uma retrospectiva cômica tão cedo assim? Não existe resposta certa. O roteiro, escrito por muita gente, categoriza os acontecimentos do ano e segue numa linha do tempo simples, onde quem é acostumado à Retrospectiva da Globo pode estranhar o pessimismo dos entrevistados, mas, certamente, estará acostumado ao formato adotado.

Tracey Ullman interpreta uma versão da rainha Elizabeth, uma mulher branca e idosa, de cabelos brancos e vestido verde. Ela está sentada numa cadeira dourada e vermelha e olha para a câmera com cara de nada. Ao fundo, vemos abajures, cadeiras e janelas
Tracey Ullman interpreta uma irrisória versão da Rainha Elizabeth, rendendo uma porção de piadas previsíveis com The Crown (Foto: Reprodução)

E, então, somos apresentados às figuras fictícias que nos guiarão ao longo dos 12 meses do ano. Samuel L. Jackson é um jornalista da paródia do NYT e tem as referências pop mais afiadas do filme, chegando no auge criativo de Brooker e companhia quando compara o status de popstar de Greta Thunberg à Billie Eilish. Na verdade, 2020 Nunca Mais pouco se esforça na hora de temperar seu texto com acidez e sarcasmo. Nesses tempos de notícias falsas, com presidentes pedindo para que supremacistas brancos deem um passo para trás, e outros ainda duvidando da eficácia da vacina, a ficção não tira riso fácil de ninguém.

O que já tinha sido colocado a teste quando Borat voltou 14 anos depois. Em 2006, o personagem de Sacha Baron Cohen conseguia fazer rir pelo absurdo e por revelar camadas nojentas de quem entrevistava. Agora, em 2020, acompanhado da formidável Maria Bakalova, Cohen não atira tão alto quanto no passado. Já virou rotina encontrar o abominável no canal de notícias ao invés da Netflix. Não à toa, a personagem de Diane Morgan, a cidadã comum, satiriza esse fato, chegando a interpretar a eleição de Joe Biden como o final de temporada da América. “Eu me surpreendi quando o país continuou indo em frente”, ela condecora em seu sotaque britânico. 

Qualquer tirada sacana ou ridicularização da estupidez cai por terra, sem qualquer peso cômico ou mesmo de estranhamento. Hugh Grant interpreta um historiador que jura de pé junto que os Caminhantes Brancos fazem parte da História americana, e Cristin Milioti personifica sua própria versão da Karen, a Kathy. Os atores se estendem em longos diálogos, com cenas de reconstituição visual e muita noção do ridículo, mas nada se sustenta como peça de comédia ou mesmo como partes de um filme. O Saturday Night Live faz isso desde 1975 e mesmo eles tem ciência do quão complicado é concorrer com os absurdos do mundo real

Vemos uma mulher ruiva sentada no sofá, ela usa suéter creme e segura o controle remoto na mão, olhando para a TV
A potente voz que narra os acontecimentos do filme é a de Laurence Fishburne (Foto: Reprodução)

Usando o roteiro copiado e colado da realidade, e sem necessidade de inventar firulas espaciais ou uma Miley Cyrus Alexa, Charlie Brooker segue o caminho mais fácil que poderia seguir: ele envelopa as loucuras do ano num agasalho de sua marca maior, a do espelho preto. 2020 Nunca Mais em momento algum se identifica como algo derivado de Black Mirror, mas tampouco se afasta desse guarda-chuva. Dessa vez, não tem vergonha na cara de tentar soar original ou escrever tramas cheias de ganchos e viradas, nem o mínimo esforço para sair do senso comum, e não há nada mais ‘Black Mirror’ que isso.

O filme leva na brincadeira os terrores do ano, mas encontra em maio seu momento mais poderoso e com vigor. Na hora de falar sobre George Floyd e o movimento Black Lives Matter, a direção de Al Campbell e Alice Mathias é terna e resiliente, fazendo brilhar os personagens de Samuel L. Jackson e Leslie Jones (uma terapeuta que está de saco cheio), reiterando que as figuras negras de 2020 Nunca Mais são os únicos seres pensantes desse microuniverso. De resto, o elenco é estelar mas demasiado estressante. Kumail Nanjiani é irritante, Joe Keery é burro e Lisa Kudrow dá nos nervos. São estereótipos que assistimos e acompanhamos diariamente na mídia, e revê-los em suas versões banais é mais problemático do que benéfico.

Isso pois 2020 Nunca Mais é uma piada interna. Seus 70 minutos esbanjam a babaquice de quem sabe que está certo e vê, por esse meio e formato, a maneira mais certeira de escrachar a outra parcela da população. Parcela essa que pode assistir ao especial e não enxergar para além do véu do sarcasmo, como muitas vezes vemos acontecer no mundo real. As Karens abraçam esse princípio, e ser chamado de racista ou fascista não pesa os ouvidos que recebe as palavras. O filme é emergencial, apressado e empunha a má fé, rir de assuntos do gênero de forma tão imediata não é só errado, como também é deselegante. Mas, vejam o lado bom, pelo menos não teve Black Mirror este ano.

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