Vitória Lopes Gomez
Se a responsabilidade de revisitar conflitos históricos e humanitários é grande e deve ser levada a sério, fazê-lo sob a perspectiva feminina em um país extremamente conservador exige ainda mais cuidado. Quando exibe as palavras ‘baseado em fatos reais‘, então. Em Colmeia, coprodução de Kosovo, Suíça, Macedônia do Norte e Albânia, exibida na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, a diretora Blerta Basholli reivindica essa responsabilidade para dar voz às mulheres do país, em coro na figura e na vida de Fahrije Hoti.
No filme, inspirado na história real de Fahrije, ela luta para sustentar sozinha o sogro e os dois filhos depois do marido ter desaparecido na Guerra de Kosovo. Ela não leva jeito para as abelhas, que já não produzem mel como antes, e se une a outras mulheres na mesma situação. Na patriarcal e conservadora vila de Krusha, em que as esposas e filhas não podem sequer dirigir, quem dirá trabalhar fora de casa, os esforços das viúvas para se manterem por conta própria não é visto com bons olhos pela comunidade local.
Sob o olhar atencioso e delicado de Basholli, que também assina o roteiro do filme, Colmeia mistura o luto à esperança. Mais do que sentir a perda, Fahrije lida com a dor da incerteza, já que não conhece o paradeiro do marido e nem pode enterrá-lo. Ela é impedida de viver seu luto por completo e, ao passo em que se permite pequenos lapsos de esperança, se agarra à inevitabilidade do futuro. Não saber atormenta, mas, seu companheiro estando vivo ou não, ela tem de cuidar e prover para a família.
Não bastasse os sufocantes conflitos pessoais e familiares da protagonista, visceralmente encarnados por Yllka Gashi, o preconceito dos moradores de Krusha se empilha no topo das muitas dificuldades das mulheres kosovar. Incentivadas e lideradas por Fahrije, as outras viúvas, primeiro, têm medo. Conquistar a própria independência financeira, nem que seja para sustentarem só a si mesmas, é liberdade demais em uma vila em que elas são desposadas cedo, são jogadas aos cuidados dos maridos ou do parente homem mais próximo, não podem trabalhar fora do ambiente doméstico e nem ousar dirigir.
Mesmo com os agonizantes xingamentos, violências e boicotes da vizinhança, que não aceita que mulheres sejam as provedoras da casa, Fahrije e as outras viúvas seguem em frente apesar dos altos e baixos. A persistência e a garra são admiráveis, mas também cansativas e quando ela e as companheiras revidam, seja igualmente pela violência, seja pelo sucesso do empreendimento, Colmeia nos concede um respiro aliviado. O filme, porém, não nos deixa esquecer de que o suspiro é só momentâneo.
Para além do expositivo ou do superficial, a produção não escolhe uma questão em que mergulhar, mas se apoia no retrato geral da situação: as mulheres não são feministas e independentes porque querem e nem políticas porque escolheram, elas deixam as tradições do passado e caminham em direção ao futuro pela pura necessidade de continuarem vivas. Através dos olhares delas, a Guerra como subtexto dá lugar para que as feridas sejam aprofundadas e tornem Hive (o título em inglês) essencialmente político não só pelo conflito que retrata, mas pela ousada e necessária ascensão feminina frente ao patriarcalismo e machismo local.
O conflito terminou há anos, mas ainda não chegou ao fim: os homens capturados na Guerra de Kosovo continuam desaparecidos. A força de Fahrije Hoti e de sua mensagem também não acabou: assim como no filme, ela ainda não sabe o paradeiro do marido, mas segue firme com sua empresa de avjar, em que emprega majoritariamente mulheres kosovares. Agora no páreo ao Oscar 2022 – a produção foi a submissão oficial de Kosovo na categoria de Melhor Filme Internacional -, o potente e singular Colmeia pode espalhar sua mensagem de esperança frente ao luto e de ousadia pela sobrevivência ainda mais longe.