João Batista Signorelli
Estrela da revista underground Chiclete com Banana, que reunia o trabalho de cartunistas como Laerte e Glauco, Bob Cuspe é um dos mais icônicos personagens de Angeli, que também povoou o imaginário dos quadrinhos brasileiros com Rê Bordosa, Wood & Stock, Mara Tara, e tantos outras. Ácido e subversivo, Bob, que estrela a animação de grande destaque na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, representava nos anos 80 a anarquia subversiva da geração punk, ao mesmo tempo que era uma espécie de alter ego exagerado do próprio autor.
Corta para os anos 2020, onde o pop devorou o punk, e o humor politicamente incorreto da revista passou a ser coisa do passado. É nesse contexto que Angeli reflete sobre sua obra e transformações criativas, e Bob Cuspe deixa a juventude para trás, parecendo-se quase com um tiozão que se recusou a se adaptar às mudanças do tempo. Em meio à gravação de um documentário e em um deserto de ideias de uma São Paulo pós-apocalíptica, Angeli e Bob Cuspe se confrontam com o passado e o presente em Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente.
Não é a primeira vez que o diretor César Cabral realiza um mergulho audiovisual na obra do cartunista Angeli com a técnica de stop-motion. Em Dossiê Rê Bordosa, ele já apresentava a mesma mistura de documentário e ficção ao investigar as causas da morte da icônica personagem do cartunista. Já na série Angeli – The Killer, exibida no Canal Brasil, Cabral preservava a mistura de formatos explorando a obra do autor a partir de recortes temáticos. Dando continuidade aos projetos anteriores, Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente é talvez o mais ambicioso até então, e já abriu a temporada de festivais consagrado merecidamente, recebendo o prêmio de Melhor Longa-Metragem da Mostra Contrechamp do Annecy, o festival de animação mais relevante do mundo.
Até se confrontarem no ato final, Angeli e Bob Cuspe precisam lidar com embates internos e externos. Angeli, em plena crise criativa, se sente impelido a dar um fim a Bob Cuspe, assim como havia feito a Rê Bordosa, marcando com um ponto final no que o seu personagem representava para sua carreira. Paralelamente, Bob Cuspe, o punk e tudo mais correm risco de morte pela constante perseguição do pop, sintetizado na imagem de hilários mini Elton Johns homicidas. Acompanhado pelos Skrotinhos, que veem nele uma espécie de símbolo mítico profetizado nas escrituras das HQs Chiclete com Banana, criador e criatura são conduzidos a um confronto para dar uma resolução aos seus conflitos.
Raro exemplar da técnica de stop-motion na filmografia brasileira, o longa é um deleite visual do início ao fim. Do escritório realista de Angeli, às viagens psicodélicas que remetem ao final de 2001 – Uma Odisseia no Espaço, passando por escombros desérticos e tubulações subterrâneas, a direção de arte de Daniel Bruson e Olyntho Tahara traduz o imaginário de Angeli ao tridimensional, com grande atenção aos detalhes, e preenchendo os espaços de referências ao universo das tiras de Angeli.
Apesar de sua origem no punk, Bob Cuspe e outras criações de Angeli viraram cultura pop. Mesmo estando banhado de referências, o longa não depende delas para funcionar, e pode funcionar como uma ótima introdução para aqueles que, assim como eu, são pouco familiarizados com o trabalho de Angeli. Em um mundo onde as telas estão dominadas por super-heróis norte-americanos saídos dos quadrinhos e outros símbolos da cultura popular estrangeira, Bob Cuspe vem para mostrar que o punk é pop, e que a animação nacional também pode ser.