Ana Júlia Trevisan
Antígona. Filha de Édipo Rei e Jocasta; irmã de Etéocles, Polinice e Ismênia; sobrinha de Creonte. Antígona. Obra do dramaturgo grego Sófocles que conversa com a atualidade e com os valores humanos pautados pela razão e pela emoção, e é a terceira peça da trilogia tebana. Antígona 442 A.C. Monólogo de Andrea Beltrão, dirigido por Maurício Farias, destaque que integra a Mostra Brasil na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Foi em 2015 que a vontade de Andrea Beltrão de ter uma peça de teatro de resistência e que pudesse ser feita a qualquer momento, floresceu. Instigada por Fernanda Torres, Beltrão condecorou Antígona como um de seus textos favoritos e assim surgiu o desafio, transformar uma peça de teatro com no mínimo quinze personagens em um monólogo. A estreia de Antígona aconteceu, oficialmente, nos palcos em 2019, mas o contexto epidêmico de covid-19 fez com que a peça tivesse um pouso forçado. Após esse hiato, Antígona 442 A.C. estreia na 45ª Mostra em forma de espetáculo filmado, onde a montagem é reestruturada para o Cinema, variando em cenas dos bastidores com estudo e mapas mentais da obra e partes da encenação no teatro.
A peça se inicia com o prólogo de Millôr Fernandes que ilustra todo contraponto com a realidade que vamos encarar de Antígona 442 A.C.: “e assim a história avança, em luta fratricida, ódio mortal, violência coletiva, tudo pago por fim, naturalmente, com a escravidão do povo, na derrota final.” O texto sobre a destruição de uma cidade parecia um tanto distópico em 2015. Mas, quando Andrea Beltrão estreou sua peça em 2019, qualquer semelhança com a realidade se tornou mera coincidência e com sua chegada ao digital em 2021, sua subversão política ecoa em notas agudas.
Antígona enfrenta a ordem do rei Creonte de deixar seu irmão Polinice, que lutou na guerra, sem sepultura para que seus restos mortais sejam devorados por animais selvagens. A jovem desobedece, realiza um ritual funerário digno ao irmão e rebate seu ato afirmando: “morrer mais cedo não é amargura, deixar o corpo do meu irmão é amargura”. Soberana em tela, Andrea Beltrão comove ao mesmo ponto que se emociona com as próprias falas, usando o texto para não apenas gerar reflexão, mas também para provocar.
O diferencial que torna magnífico é ver a própria Andrea Beltrão contando a história e se preparando para a peça. Há cortes para o teatro entre as cenas, que é quando a atriz aparece maquiada já em cima do palco, encenando com força cada uma de suas falas. Em seu estúdio de ensaio a entrega é com a mesma intensidade e precisão. De cara limpa, Andrea revela todo empenho aos estudos e a história que estava interpretando. Em sua parede, uma mapa mental dos personagens de Zeus aos tebanos; em seu computador, roteiro e fotos que guiam a atriz por essa viagem entre séculos.
Tamanha é a devoção mostrada nos bastidores que Andrea Beltrão se firma como dona de um conhecimento inigualável sobre o texto de Antígona 442 A.C.. As mudanças no tom de voz conforme ela encarna uma nova persona elucida a confiança da atriz e o conhecimento de cada vírgula da peça teatral; por meio da sua voz fica claro o poder e a importância da personagem na odisseia. Sua narrativa com olhar fixo para a plateia consagra a atriz dona do tablado, que domina o palco com tamanha destreza que não sentimos falta da plateia lotada. Sua linguagem corporal fala tão alto quanto a verbal, concentrando total atenção a figura da atriz, independente do lugar de onde a câmera esteja.
Imersa no próprio oásis, Andrea se emociona com a crescente narrativa. A razão e a emoção são postas lado a lado e Antígona não cede, ela abre mão de sua posição social e de poder para arriscar dar um último ato humano à memória do irmão. A peça teatral ganha nova ótica e substância no contexto pandêmico e tirano do Brasil de Bolsonaro, enquanto os governantes responsáveis por esse genocídio não querem seus nomes correlacionados a essa tirania, temos milhares de Antígonas que lutam pelo respeito da memória de seus entes. E as palavras finais de Andrea reverberam com ainda mais precisão: “os tebanos não tiveram outra chance, mas pra nós ainda há esperança”.