Enrico Souto
Uma família de classe média-baixa, desajustada, que viaja na expectativa de sair da rotina, fugir da monotonia e recarregar as energias, mas que ao chegar lá, precisa enfrentar todas as tensões que transbordam do lado de fora, dessa vez acompanhadas da frustração de que não há como escapar dos infortúnios da vida. É essa experiência, tão relacionável e tão próxima de nós, que é relatada em A Felicidade das Coisas, filme brasileiro que marca presença na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, revelando, por fim, a potência dessas pacatas relações, e o que encontramos ao investigá-las.
Aqui, vemos o mundo pelos olhos de Paula (Patrícia Saravy), mãe de duas crianças, e que agora espera uma terceira filha. O cenário é o de uma casa de veraneio em Caraguatatuba, no litoral de São Paulo, onde ela passa as férias com os filhos e sua mãe (Magali Biff). Acompanhamos o cotidiano daquele espaço, a família frequentando a praia suja e modesta; observando, do outro lado da grade, as outras crianças brincando e relaxando no clube riquíssimo da cidade, que eles não podem pagar; convivendo com a vizinhança, para eles ainda estranha; enquanto lidam com suas desconfianças e aprendem a confiar uns nos outros.
Na maior parte do tempo, a narrativa gira em torno de um grande objeto: a piscina que Paula pretendia construir na casa. Esse desejo, contudo, desvanece quando seus problemas financeiros vêm à tona. Ela não consegue pagar pelos materiais para a construção, e seu marido mantém-se distante, recusando a ajudá-la financeiramente. A piscina, antes a solução imediata para seus problemas, agora torna-se apenas mais um dos inúmeros fardos que Paula precisa carregar, que culminam no seu completo sufocamento. O sentimento que fica é que, não importa o quanto se esforce, ela nunca terá direito ao alívio. E sua reação instintiva a essas viscerais emoções é a dureza e hostilidade, o que faz com que ela, ainda que não se dê conta, gradualmente se afaste daqueles que ama.
A Felicidade das Coisas (The Joy of Things, no inglês) é a estreia de Thais Fujinaga na direção de longas-metragens e, através do filme, a diretora demonstra de cara sua inventividade e visão sofisticada. Sua direção ambienta o espectador de forma orgânica, e nos entrega elementos a respeito daquele microuniverso com plena naturalidade. Informações como ‘o lugar onde a história se passa’ ou ‘o período no tempo em que eles estão’ são ditas sutilmente, de modo que o público as absorva espontaneamente, mesmo que não perceba.
Além disso, não necessariamente o filme segue uma estrutura narrativa de três atos, apostando em uma divisão mais ramificada, quase como uma sequência de esquetes independentes que se conectam. Esse caminho poderia ser um ponto negativo, mas aqui ele potencializa as qualidades do longa, pelo caráter sólito e corriqueiro daqueles conflitos. Isso dá verossimilhança para a trama, sugerindo que ela carrega muito mais história do que os registros que temos acesso, ao mesmo tempo que traz a sensação de que estamos realmente vivendo aquelas intempéries com a família. No fim, nos conectamos facilmente com esses personagens exatamente porque as situações retratadas ali são absolutamente cotidianas.
Fujinaga também sabe precisamente no que dar foco e quando dar foco. Um exemplo é a imagem do marido de Paula, pai das crianças. Ele não tem voz, não tem rosto, nem presença. Nunca explica-se a real conjuntura do casamento entre ele e a protagonista, mas sabe-se que o homem é negligente, tanto com sua esposa, que precisa mais do que nunca da sua ajuda pela chegada do bebê, quanto com seus filhos, que sentem com pesar essa ausência. A escolha de manter o personagem nas sombras, praticamente apagado, é primorosa, não só por traduzir com exatidão como a família se sente a seu respeito, como também por parecer partir da intenção ativa de não apagar o sofrimento e aflição de Paula, que poderiam, com facilidade, ser menosprezados por um cineasta menos sensível e sem a bagagem e vivência de Thais.
Ao contrário do que o título primariamente dá a entender, A Felicidade das Coisas trata muito mais sobre as angústias que acompanham a vida e nossas relações afetivas. Mas, principalmente, trata sobre as alternativas que procuramos na tentativa de nos livrarmos dessas angústias: sobre o Guto (Messias Barros Góis) desprendendo-se da mãe e buscando validação entre os garotos da comunidade; sobre a Gabi (Lavínia Castelari) se esforçando para compreender os conflitos da família através de suas lentes ainda ingênuas; sobre a Paula lutando contra seus desencantos, e sobre a avó encontrando maneiras de colocar aquela piscina em pé, almejando restaurar os vínculos familiares, já em cacos. A mensagem final do filme é dúbia, sem saber concluir se a busca por essa felicidade vale ou não seu preço. Porém, ratifica que é apenas por meio desses elos tão complexos que conseguimos perceber o mundo à nossa volta.