Vitor Evangelista
Antes mesmo de lançar sua primeira série de TV, o Universo Cinematográfico da Marvel já usava a estrutura da telinha para contar histórias. Kevin Feige, a mente por trás do império, ligava os filmes entre si, como capítulos na grade semanal. Por conta disso, ao anunciarem a migração do início da Fase 4 para o Disney+, a empresa suscitou a curiosidade: como eles se comportariam frente ao formato propriamente dito? A Marvel seria capaz de sustentar uma narrativa difusa e não condensada nas duas horas e meia que acostumou o público a assistir, com óculos 3D e um baldão de pipoca com manteiga? O fim de WandaVision responde algumas dessas questões.
Foram oito semanas de exibição, passeando entre as eras da Televisão. Cada capítulo ganhava um título sugestivo de seu papel metalinguístico, e os créditos comiam boa parte da duração. As seis horas de conteúdo, prometidas no modelo Marvel televisivo, não passaram de balela. Essa foi a primeira mentira. A direção de Matt Shakman, de cara, soube extrair o ouro das inspirações cômicas na qual o cerne de cada episódio era construído em volta. I Love Lucy, A Feiticeira, The Brady Bunch, não havia maneira melhor de inserir o MCU na TV que não fosse homenageando esse meio.
Algo que Kevin Feige sempre teve em mente enquanto revolucionava o cinema blockbuster com a Saga do Infinito era a ciência de quais fontes beber. Os filmes da Marvel dosaram a mão para, na mesma medida, homenagear e criar cenas memoráveis o bastante para se tornarem referência no futuro. Nesta década de construção da tensão e do clímax de Thanos, a Televisão americana passava por sua própria ascensão. O apreço pelas minisséries tomou Hollywood de solavanco, grandes nomes das telonas fizeram TV e foram reconhecidos e premiados por isso. Estrelas do próprio hall dos Vingadores, como Mark Ruffalo, tiveram performances desafiadoras e ovacionadas.
WandaVision começou como uma estranha sitcom que homenageava as sitcoms do passado. Cada capítulo mudava completamente o formato, a linguagem, a abertura e até o cenário. Era uma aula de história com personagens da Marvel, algo inédito para o Universo que já fez de tudo, desde romances shakespearianos até óperas especiais e comédias no Ensino Médio. Então, quando saímos do ambiente do Hex, o misterioso domo que abrigava Westview, para entender o que rolou no mundo de fora, a minissérie perdeu o fôlego e nunca mais conseguiu recuperá-lo.
Para quem estava investido em Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen) e no Visão (Paul Bettany), de nada importava a quantas andavam as coisas depois do Blip. Mas, mesmo assim, o roteiro encheu a tela com a presença de Monica Rambeau, Jimmy Woo e Darcy Lewis. Coadjuvantes bons? Sem dúvidas! Mas no que eles agregariam à série de origem da Feiticeira Escarlate? Volta à nossa mente, então, que a Marvel já fazia TV e enfiava personagens onde podia para dar o nó narrativo e suspirar no fim: “olha aí, estava na nossa cara sempre”. Quando o último capítulo sobe as letrinhas, e nenhum desses rostos periféricos tem o mínimo de desfecho, WandaVision decepciona.
Uma cena entre créditos de Monica encontrando alguém que pode guiá-la à Capitã Marvel 2 ou à Invasão Secreta não é o suficiente para quem acompanhou sua jornada aqui. A Darcy (Kat Dennings, subaproveitada), coitada, que passa O Grande Final sumida e aparece atropelando o grande chefão do mal, nem ganhou segundos a mais de tela para criar uma ponte com Thor 4. Falando no vilão, que é bunda mole o bastante para nunca representar ameaça alguma, Hayward é o cuspe de todos os generais que a Marvel já usou de antagonistas: sem primeiro nome, sem carisma e sem motivação. Ele queria parar a Wanda, pois! Mas, e o motivo? Ah, porque sim.
Todo o enredo da corrupção da S.W.O.R.D. já foi feito melhor em Soldado Invernal. Os momentos fora do Hex e longe da série da Wanda ajudaram a tornar enfadonha a experiência de acompanhar uma história honesta sobre perda e dor, protagonizada pela personagem mais interessante da Marvel. No episódio 8, Wanda participa do Arquivo Confidencial do Faustão ao lado de Agnes, e a bruxa revê uma de suas primeiras interações com o futuro marido, logo após a morte de Pietro em Era de Ultron.
Quando expressa o vazio que sente, Wanda ouve um Visão, ainda confuso com as emoções humanas, declarar em forma de dúvida, “o que é o luto, se não o amor que persevera?”. A Marvel nunca antes havia mergulhado com vontade em temas inerentes ao comportamento social dos heróis. Essa fala do robô acontece uma semana depois da minissérie homenagear Modern Family para mostrar o estado depressivo da protagonista. A mudança das décadas entre sitcoms ajudou a denotar a fricção do modelo de família americana que os Estados Unidos representava.
O que começa com os anos 50, a esposa de saia rodada e com a capacidade de cozinhar uma refeição enorme em poucos minutos, se tornou uma desconstrução do papel das narrativas televisivas na vida de quem assistia. Ninguém é perfeito no mundo real, então isso não deveria ser feito na ficção. A casa muda de tamanho, os bebês nascem e crescem. O protagonismo é compartilhado. Quando chegamos nos anos 2010 e Modern Family vira o papel-carbono da semana na Marvel, eles falam sobre depressão, sobre medicamentos e sobre como aceitar essa condição é o primeiro passo para a melhora, por menor que seja.
Super-herói tem direito a terapia? A minissérie tinha tudo para responder isso, fugir do clichezão das lutas aéreas e justificar seu papel como precursora televisa, abrir a Fase 4 e reapresentar a Feiticeira nesse contexto pós-Thanos, sem irmão, sem marido e completamente instável. Ela vivia sua própria e autoinduzida quarentena, enquanto o mundo fazia o mesmo, mas sem o poder de escolha. Wanda Maximoff, uma mutante nos quadrinhos, era peça central das histórias dos X-Men, a minoria que lutava por respeito. O que é WandaVision, senão a Marvel finalmente adereçando temas sensíveis e usando heróis de collant e látex no processo?
Não houve equívoco maior. A razão está ligada ao vício da série em querer se justificar e explicar cada frase e cada cena. O Arquivo Confidencial do episódio 8 foi eficiente por revisitar os traumas em favor do desenvolvimento de Wanda. Assistimos o momento onde sua infância mudou para sempre. O passatempo da família em Sokovia era devorar séries americanas (a-há!), até que uma bomba explodiu os pais dos gêmeos, que passaram dias esperando um míssil Stark ser acionado e finalmente acabar com o sofrimento dos Maximoff, matando-os.
A bomba nunca fez o seu trabalho. Agnes revelou que Wanda usou magia de probabilidade para salvar sua pele e a de Pietro. A Joia da Mente, na verdade, apenas despertou uma parte dormente dos poderes da jovem Wanda. Um artifício de retcon interessante e pertinente, colocando a jovem mulher como um receptáculo muito maior do que os filmes da Marvel nos mostraram. Numa conferência da S.W.O.R.D., Hayward pergunta enfaticamente se Maximoff tem algum ‘apelido engraçado’, para o que algum coadjuvante nega. WandaVision cai nas armadilhas que a própria Marvel tem feito de piada nas produções recentes, jogando a isca para Wandinha ser chamada do que sabemos que ela será chamada.
O que resulta no pensamento e terrível constatação que as personagens femininas necessitam de tramas engessadas e momentos de batismo clichês, pelo fato dos homens terem feito isso oito anos atrás, e, agora, essas batidas narrativas soam tão fracas e gratuitas (uma pausa para falar que a cena de Agnes nomeando Wanda é sensacional e não deve nada aos heróis babões dos Vingadores). Capitã Marvel, primeira mulher a ganhar um filme solo, só conseguiu o feito 2 anos atrás. Viúva Negra morreu e só terá história própria agora. Wanda era até anteontem pintada como a deusa, louca e feiticeira do grupo, sem personalidade própria ou tempo de tela suficiente para ganhar apelo para além do carisma de Olsen.
Precisou uma pandemia mundial e o desgaste monstruoso do cinema para as mulheres ganharem o protagonismo e fugirem do arquétipo do par romântico, da maluca ou da personagem poderosa demais, mas estranhamente sem minutos suficientes para trabalhar com essas habilidades. E querer usar a Feiticeira como arma clichê do gênero não representa algo maléfico, mas WandaVision fez representar. A escolha de exibir semanalmente os curtos capítulos abriu espaço para um alvoroço e para a criação das mais mirabolantes teorias.
E elas foram a bênção e a maldição da série criada por Jac Schaeffer. Tudo começa com a notícia de que a trama WandaVision desembocaria diretamente em Doutor Estranho 2, que tem Multiverso no título. O que vem de antes, considerando a compra da Fox pela Disney, e lê-se aqui que os X-Men agora podem aparecer no MCU. Eis que, no meio de uma discussão entre o casal principal, alguém bate à porta. Ding-Dong. É um homem branco, jeito de moleque e de cabelos intencionalmente prateados. Evan Peters, que fez o Mercúrio na saga dos Mutantes anos atrás, dá as caras aqui vivendo o mesmo personagem, velocista alado e irmão da Wanda.
As pessoas perderam a cabeça. Dúvidas e teorias se multiplicaram como coelhos no inverno. A interpretação de Evan Peters remete ao ar jocoso do Pietro da Fox, mas toda sua origem é a da versão que morreu em Era de Ultron. Quais são os planos da Marvel? No fim, o estúdio apenas confirmou o receio já latente de que a simplicidade comanda o Universo. Esse Mercúrio, que era ponto central da história de WandaVision e uma demonstração física da estranheza proposital do seriado, some e nunca mais é dedicado a ele tempo para se justificar ou, ao menos, para existir ali
O que foi repetido pela presença de Agnes. A vizinha enxerida passa o começo da série citando seu marido Ralph e fazendo piadas de duplo sentido com o Inferno e o Diabo, mas nada evolui. Parece que o time de roteiristas tinha ideias, mas elas morreram no processo de solução dos mistérios e mesmo assim foram mantidas. Foi a Agatha o tempo todo! Ainda bem, pois o que não precisávamos era de mais um vilão genérico homem e sem qualquer carisma ou singularidade. A presença iluminada de Kathryn Hahn, acostumada ao formato de sitcoms na carreira, é o fator determinante do saldo positivo de WandaVision.
Um saldo positivo que a cada semana ia extraindo tudo de bom e focando nos fatores mais prejudiciais da série como série. A simplicidade ter reinado por 8 semanas não era um bom sinal. O que não significa que WandaVision precisava de cameos malucas, teorias confirmadas ou a aparição do Quarteto Fantástico, nada disso. A cultura da teoria tem reivindicado esse lugar de barulho, onde algo só é bom e vale a pena se o Luke Skywalker aparecer de surpresa e salvar o Baby Yoda de todo o mal.
A revelação da Agatha sozinha funciona por influenciar a jornada de Maximoff sem soar gratuita. A série da Feiticeira e do Visão não precisava de nada além da Feiticeira e do Visão. O que nasceu com a promessa de desvendar o luto, os traumas e as consequências da tristeza em alguém super humano, acabou renegando esse caráter de sensibilidade e força. Qual a solução que fica? O luto é passageiro e tudo vai dar certo porque seu marido robô ainda pode viver e os filhos mágicos estão em algum lugar por aí? WandaVision começa com Wanda sem controle dos poderes e buscando maneiras de controlar seus sentimentos, e acaba com ela tendo feito exatamente isso, mas pulando o momento de viver com a perda e entender o papel eterno e duradouro das ações de Thanos.
A metamorfose das décadas televisivas em WandaVision não teve papel na narrativa, fora a estética e a graça de piscar para os nerds da TV. Se o Visão voltou, as crianças têm chance de retornar, e ninguém de Westview se revoltou contra a bruxa, então de que serviu a jornada dela por 9 episódios? Passar de superpoderosa descontrolada para superpoderosa controlada não é um arco narrativo satisfatório, e foi feito mesmo assim. E a parte triste é que a mente por trás dessa escolha tinha total ciência das consequências. Agora, aguardemos para ver Wanda ao lado do Doutor Estranho, torcendo para a Marvel não decidir jogar tão baixo novamente.