A beleza de Vinco está na incerteza de si

Livro recebido através da parceria do Persona com a Companhia das Letras, Vinco é o primeiro romance da autora a ser publicado pela editora (Foto: Companhia das Letras)

Enzo Caramori

‘‘(…) para lugar algum meu filho, tu podes

ir e ainda que se mova o trem

tu não te moves de ti.’’

    – Hilda Hilst

O celebrado livro Orlando, de Virginia Woolf, que de tudo tem um pouco — biografia, romance histórico e carta de amor — afirma-se na Literatura enquanto um marco zero. Mesmo às lentes críticas do filósofo Paul B. Preciado, que, ao ler os diários de Woolf, destaca o caráter classicista da escritora, reside um deslumbramento acerca do afeto em suas palavras à transitoriedade materializada no corpo do texto. A história de personagens em estado de trânsito, seja entre diferentes espaços ou no limiar de construções como nacionalidade e gênero, são temas costurados à escritura de si. Para narrativas como as de Orlando, Muriel — alter-ego da cartunista Laerte que enquadra sua transição social — e Manu, protagonista de Vinco (2022), o terceiro romance da escritora gaúcha Manoela Sawitzki, Preciado possui um questionamento chave: ‘‘O que acontece com o relato de uma vida quando é possível modificar o sexo do personagem principal?’

Para Vinco, corpo, identidade e texto são territórios que se mesclam em acidentes, trajetórias errôneas e pontos fora da curva. Em sua não linearidade, a obra — híbrido de uma literatura de viagem e um romance de formação — acompanha os capítulos da vida de Manu: de sua adolescência na classe média-alta carioca dos anos 90 a sua vivência em uma Paris ainda tomada pelos ares marginais de Jean Genet, até chegar no dicotômico ‘sertão verde’ da cidade de Tacaratu. Na escrita de Sawitzki, essa personagem — fragmentada pelos espaços que procura pertencer, pela memória de traumas e pelos pronomes a que se refere — embarca em uma busca de si em uma narrativa que progressivamente se deslocaliza e desintegra, sendo estrangeira tanto para si mesma quanto para os lugares que transita.

As noções de estrangeiridade que ecoam no livro, advindas do pensamento de Julia Kristeva, lido pela autora em sua pesquisa de mestrado e doutorado, se iniciam justamente no lar de Manu. Nesse espaço de pressuposto pertencimento, a radiografia familiar realizada por Sawitzki a partir de uma rememoração da meninice tipicamente queer da personagem principal ressonante do olhar da escritora a seu próprio irmão — revela uma dinâmica familiar de supressões. De uma mãe controladora a um irmão violento, o ‘‘deserto afetivo’’ em que Manu tenta se situar, com o impeditivo de um traço pessoal de solitude, encontra seus oásis na figura de um pai misterioso e uma avó liberta das amarras de seus desejos. 

Manoela Sawitzki, que também é roteirista e jornalista, ressalta o papel da pesquisa para sua ficção: ‘‘ (…) esses anos de pesquisa alteraram a minha voz, a minha forma de estar no mundo e de olhar para as coisas.’’ (Foto: Omar Salomão)

As palavras de Manoela que tecem a história de Manu — nessa partilha de apelidos que espelham autor e personagem — são responsáveis pela composição ora de momentos flutuantes de beleza quanto de baques viscerais de violência e crueza. A primeira parte, justamente pelo território nebuloso e esparso da lembrança, vai de um tema a outro numa amálgama não arbitrária e contrastante. Entre pulos e retrocessos temporais, o namoro da juventude, a descoberta sexual e o governo de Fernando Collor de Mello são logo amarrados nas temáticas de morte, anedotas familiares e o impacto da Xuxa na infância do fim do milênio. Esse encadeamento, em sua falta de coesão, cheio de entradas e saídas, é justo à vastidão e à fragilidade de uma memória em movimento.

Assim como no recorte da tela The Slap, de Camile Sproesser — escolhido para ilustrar a capa do livro —, no romance existe uma feminilidade simbólica, um sentimento de divergência imanente e inesperado que sobrepõe as rotas de uma masculinidade instruída à formação da protagonista. A vigilância a um corpo que, desde o início da narrativa, tenta limitar-se para ocupar os espaços de maneira limítrofe e não revelar sua dissidência, não é o bastante para protegê-lo das violências que ocorrem por uma masculinidade autoritária dentro do núcleo familiar. No entanto, tais percepções sobre a subjetividade de Manu estão em constante mutação: em Copacabana, o corpo era um esconderijo; em Paris, ele é capaz de ser um repositório de sonhos. 

Lá, em uma outra experiência de alteridade, que funde nacionalidades e códigos sociais — principalmente em seu trabalho de limpeza em quartos de hotel, no qual adentra e agrega-se às intimidades dos hóspedes — Manu cruza com sujeitos que, assim como sua avó, rompem com suas raízes culturais para autenticarem o exercício de suas próprias sexualidades. Os olhares da protagonista, afetados por uma Paris da leitura de Genet, se situam (graças a materiais retirados do acervo pessoal da autora) em banheiros escuros, praças e seus perambulantes e raios de luz saídos de vitrais em escadas. São dobraduras, marcas da memória que Sawitzki, em sua escrita-viagem, deixa ao leitor em tentativa de ilustrar e mobilizar textualidades próprias das fotografias, ressonantes das imagens fincadas nos parágrafos da prosa excepcional de Victor Heringer

Artistas como Cindy Sherman, Kazuo Ohno e Ana Mendieta são lembrados em suas práticas de desafio às fronteiras do corpo (Foto: Manoela Sawitzki)

De Paris a Tacaratu, percurso também feito pela escritora em sua encarnação das trajetórias, Manu inicia a subverter a perspectiva, fundante do livro, de omitir a si mesma pelo processo de descrever e desdobrar-se sobre o mundo que a cerca. Nisso, a prosa é afetada por uma perspectiva curiosa da autora-pesquisadora, que dirige a prática de descoberta da escrita à trupe de dissidentes, calorosos à estrangeira recém-chegada, e dos causos que rondam a cidadezinha nordestina, centrando esse romance de formação para além de Manu e suas inquietações. 

Na verdade, Vinco parece deformar as características dessa estrutura — de mergulho e introspecção na personagem adentrada em mudanças — em detrimento da promoção de um sentimento de estranheza do leitor na demora de uma formação de uma imagem de quem ele partilha a história. É como se, tanto para Sawitzki quanto para Manu, não fosse o exato momento para se definir sua aparência, pois existe um empenho muito mais árduo em tornar o mundo que a cerca menos estranho e abjeto para si. Nesse sentido, a partir da indefinição desse rosto e desse corpo, se constrói uma vivência identitária e experimental de ser, efetivamente, outro; na tentativa de fabricar-se a partir dos deslocamentos interiores e exteriores que realiza.

A cidade de Tacaratu e de Paris se refletem nesse mosaico afetivo (Foto: Manoela Sawitzki)

Na paisagem do sertão nordestino, a busca por um pai distante envereda-se em uma materialização de uma mulheridade de Manu. Lenços que encobrem seus cabelos, falhados pela condição da alopecia — mais uma expressão dessa intrincada relação com o corpo —, e sutiãs rendados podem parecer inscrições simbólicas de sua feminilidade. Contudo, a construção desse amadurecimento nunca perpassa por dúvidas ou atritos entre esses dois polos tão demarcados pela binaridade de gênero: é como se Manu, desde o princípio, houvesse borrado as normas desse regime para construir, como cunhado por Preciado — sob a luz de Monique Wittig e Judith Butler —, uma ‘contrassexualidade’, que nunca toma um aspecto espetacular ou de um plot-twist no arco narrativo tecido por Sawitzki. 

Tanto que, para esse coming of age banhado em uma estrutura de um road movie, não existe a iminência de um confronto ou revelação. Diferentes de narrativas sobre transgeneridade que se utilizam muito da imagética de metamorfoses — em que se delimitam um ponto crucial que divide passado e presente — Manu prefere firmar a si mesma, assim como o texto que lhe estrutura, na condição de gerúndio, em que deita a segurança de sempre estar sendo em vez de ter sido. A historicidade de práticas de crossdressing, que também vincula os sujeitos, em novos espaços, a um papel de estrangeiridade, parecem inscrevê-la no seu próprio corpo, mesmo que a sutileza do texto não a explicite. As palavras de Vinco, em sua essência, nada destacam: funcionam como pegadas silenciosas das singelas mudanças, as quais a pureza humana do crescimento e o entendimento de si próprio conseguem ser capturados em toda sua inconstância. 

Em sua escrita, a autora retoma uma mitologia do gênero enquanto performance (Foto: Manoela Sawitzki)

‘‘De desfazer-me eu meu, eu, eu, eu, eu’’. Acima de tudo, Vinco constitui um percurso de identidade, da memória e da geografia; o qual as transformações são a proposta estética de uma narrativa que ocorre em todas direções, rasgando a condição de sujeito para buscar-se na alteridade. Enquanto em Orlando o poder de um corpo em fluidez consegue distender as linhas do tempo, levando à imortalidade de sua personagem, o livro de Manoela Sawitzki parece, em suas delicadas explosões, romper os limites da linearidade do texto na união do trânsito do corpo ao da escrita. A obra é um registro integral da vida, atravessada por entranhadas costuras de acontecimentos de uma identidade constituída de deslocamentos, que dão uma única certeza: a beleza é vincada de incertezas.

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