Sabrina G. Ferreira
A sátira criada e dirigida por Mike White (Enlightened, Escola de Rock), se tornou um completo sucesso em audiência desde seu lançamento pela rede americana HBO, tanto que já tem sua segunda temporada encomendada para o próximo ano, em um formato de antologia, com personagens e histórias diferentes. Toda trama de The White Lotus se passa num resort de luxo no Havaí, de mesmo nome da série, e tem como protagonistas três grupos de pessoas, com algo predominante entre elas: são todas ricas e brancas.
Inicialmente, tudo parece ir às mil maravilhas. Os funcionários do resort dão as boas-vindas ao grupo, sempre sorridentes. Porém, o que vemos inicialmente não é a realidade. Os funcionários, de classe social inferior, entre eles se destaca o gerente Armond (Murray Bartlett), são obrigados a deixarem seus problemas de lado, e satisfazer os caprichos dos hóspedes de classe alta, como Shane Patton (Jake Lacy), recém-casado com Rachel (Alexandra Daddario), em suas condições de total servidão. Um exemplo disso é quando Belinda (Natasha Rothwell), gerente do spa, tem dor nas costas após um dia de trabalho, mas precisa massagear Tanya McQuoid (Jennifer Coolidge), uma senhora rica, que vive no ócio o dia todo. A série não só trabalha em torno das personagens, mas também é notável uma crítica em torno da elite e dos explorados.
As personagens são muito bem elaboradas e entram em conflito simultaneamente, de modo que há uma sincronia entre suas ações e comportamentos, e tudo é acompanhado com excelência pela constante trilha sonora, que muda com o ritmo dos acontecimentos. Também vale salientar que muitas das ações das personagens principais causam certo desconforto no espectador, que pode se visualizar cometendo os mesmos erros deles, como quando Mark Mossbacher (Steve Zahn) pensa que os havaianos estão dançando para os hóspedes brancos durante o jantar porque querem honrar a cultura deles, e que eles se sentem bem em fazer aquilo.
“Não se deve matar pessoas, roubar suas terras e depois fazê-las dançar. Sabemos disso. Mas é a humanidade. Bem-vinda a América!”
– Mark Mossbacher
A série também chama a atenção pela fluidez com que temas considerados polêmicos são abordados, tais como: relacionamento abusivo e machismo, presentes no casal Patton; alcoolismo e carência extrema, como ocorre com Tanya McQuoid; e preconceito, visíveis no comportamento de Mark Mossbacher. Outro assunto que é muito bem explorado, é a posse dos brancos sobre as terras dos havaianos no passado. Um dos funcionários do resort, um havaiano chamado Kai (Kekoa Scott Kekumano), conta para Paula (Brittany O’Grady), que o hotel está construído sobre as terras de seu povo, e que os donos do local não pagaram um valor justo por elas. Agora o rapaz trabalha para o hotel, porque, segundo ele, precisa de dinheiro para viver.
Um dos destaques na série são as duas hóspedes mais jovens, Olivia Mossbacher (Sydney Sweeney) e sua melhor amiga, e de classe social “inferior”, Paula. A princípio, as duas parecem amigas próximas, mas após alguns episódios, é evidente a competitividade de Olivia com Paula, até mesmo com o fato da moça engatar um namoro durante a viagem, e ela não. Como Paula diz: “Ela é minha amiga enquanto tem mais do que eu”. A viagem para elas é puro tédio, até se darem conta de que levaram, sem perceber, uma mochila com drogas. Há ali uma denúncia de como será a nova geração de ricos, com o exemplo de Olívia, que age ao contrário de todas as frases politicamente corretas citadas por ela.
A esposa de Shane, Rachel Patton, é a única hóspede dali que pertence à classe média, e a única que é possível o espectador se identificar. Vinda de uma família humilde, se deslumbra com a vida de luxo que conquistaria casando-se com um milionário. Apesar de sua carreira como jornalista, não possui emprego fixo, trabalhando esporadicamente como freelancer. Durante a viagem de lua de mel, se sente desconexa daquele mundo, primeiro após um encontro com Olivia e Paula na piscina, e após, em uma angustiante discussão com Nicole Mossbacher.
Em outra passagem, Shane Patton se mostra contrário à ideia de sua esposa trabalhar, ou ter uma vida sem ser subserviente a ele. Quando a mãe dele, Kitty (Molly Shannon), aparece para uma visita durante a viagem de lua de mel do casal e ele expõe esse impasse do casal a ela, a mesma apoia o filho, dizendo que é mais vantajoso organizar eventos, do que trabalhar. Ou seja, não existe satisfação pessoal em ter uma vida financeira independente do marido, só o questionamento da falta de sentido em querer obter dinheiro com trabalho se já tem a posse dele em abundância, sem precisar disso.
É surpreendente a evolução do filho caçula do casal Mossbacher, Quinn (Fred Hechinger) ao longo da série. Logo nos primeiros episódios é retratado como um jovem infantilizado e alienado em jogos de celular. Após a estadia no resort, o jovem passa a aspirar a independência e um modo de vida mais simples, semelhante ao do seu novo grupo de amigos havaianos. A lição passada aqui é que, por mais que uma pessoa seja adaptada às mordomias que o dinheiro proporciona, não necessariamente significa que ela seja feliz.
Talvez o personagem central da série, seja o gerente do resort, Armond, que passa por percalços desde o início, com o parto inesperado de uma funcionária em seu escritório, e após, as desavenças com o Shane Patton, por causa de um erro na reserva de uma suíte. O papel de Armond no desenrolar da trama nos faz perceber aquilo que passa no consciente de muitas pessoas que precisam servir, mas não gostam daquilo, e têm os hóspedes como secretos inimigos. Seu sorriso forçado não consegue esconder o que se passa em seu emocional, e toda a pressão do cotidiano no resort, viria a cobrar um preço caro a ele no futuro.
Há também a conexão entre Tanya e a funcionária do spa, Belinda. Após uma sessão de massagens, Tanya tem uma catarse, e adquire uma relação de dependência com Belinda. Essa relação vai além, quando Tanya propõe abrir um spa, tendo Belinda como sócia. Após alguns dias, Tanya desenvolveu um relacionamento amoroso com um hóspede do quarto ao lado. Desse novo relacionamento, cessam as chances de parceria entre Tanya e Belinda, pois, segundo ela, voltaria ao padrão de fazer uso do dinheiro para controlar e explorar outra pessoa, e isso não seria saudável para ela.
O uso recorrente de humor ácido está em todas as passagens, bem como na mensagem difundida com o desfecho do enredo. Por mais que a série queira nos passar uma imagem de final feliz para alguns personagens, há a consciência de que esse final só é possível para os que pertencem a uma classe social privilegiada. Já os personagens que têm um final trágico, fica a reflexão de que, caso pertencessem a uma família abastada, teriam o mesmo fim, ou seus atos seriam igualmente julgados pela lei e aceitos pela sociedade.
Ao fim do sexto e último episódio, vemos algumas situações de conformismo, e outras de surpreendente transformação. Porém, chegamos a conclusão de que o mundo é desta forma, cheio de diferenças e injustiças sociais, que muitas vezes assimilamos e aprendemos a aceitar, mas para mudá-lo precisamos bem mais do que o uso de bordões politicamente corretos em conversas entre amigos, e discursos em redes sociais.