Vitor Evangelista
Quando um premiado cineasta decide migrar para as telinhas, é sinal de que sua Arte está em expansão. Não apenas no escopo narrativo, já que a TV abre espaço para histórias volumosas e intrincadas, mas também no campo da linguagem, considerando também que o formato seriado testa limites, que vão desde a criação de personagens e ritmo até sua inevitável conclusão. Por isso, o deleite de assistir Barry Jenkins anunciar seu envolvimento em The Underground Railroad apenas premeditou aquele que seria o trabalho mais coerente, sufocante e crucial de 2021.
Os Caminhos Para a Liberdade é um livro escrito por Colson Whitehead, em 2016, e vencedor do Pulitzer no ano seguinte. Essa é a base para o projeto imprescindível de Jenkins, que vem trabalhando para que grandes autores negros tenham suas obras adaptadas para o audiovisual. A estreia de Jenkins no Cinema mainstream, em Moonlight, usa a peça de teatro de Tarell Alvin McCraney como ponto de partida para discursar sobre escolhas e sobre o amor, quando se é negro e não se tem muitas possibilidades. Moonlight venceu 3 Oscars, entre eles, Roteiro Adaptado e Melhor Filme.
Se a Rua Beale Falasse é a adaptação do livro homônimo do lendário James Baldwin, e mostra um Jenkins mais seguro no posto de diretor, guiando suas cenas não por simples diálogos ou ações, mas deixando que a emoção da trágica história de um romance interrompido dê as batidas narrativas que levaram o longa ao palco do Oscar, vencendo a estatueta de Melhor Atriz Coadjuvante para Regina King. Com The Underground Railroad, entretanto, o caminho não será o mesmo. A Série Limitada original do Amazon Prime Video não foi reconhecida da maneira que deveria no Emmy 2021, portanto, tornando impossível que sua coroação aconteça da mesma maneira que trabalhos anteriores do cineasta o fizeram.
Foram apenas 7 menções para a produção, que já perdeu cinco delas no fim de semana do Emmy Técnico, e não tem muita chance de vencer na noite principal do Emmy. A falta de campanha por parte do Prime Video é o primeiro fator que desemboca na miséria e na ausência do prestígio, mas o buraco é mais embaixo.
Comandado pela novata Thuso Mbedu, o elenco não escalou nomes grandes da indústria. Isso, em adição a um ano extremamente tumultuado na corrida das Séries Limitadas, resultou em seu reconhecimento na categoria principal e também de Jenkins pelo conjunto da obra em Melhor Direção. Mas que falta faz uma menção para Mbedu como Atriz, ou para os exímios coadjuvantes Aaron Pierre, William Jackson Harper, Joel Edgerton e a inacreditável Sheila Atim.
Ao longo de dez episódios, todos dirigidos por Jenkins, acompanhamos a jornada de Cora (Mbedu), uma escrava fugitiva, que parte em busca da ferrovia do título. Ao longo das tempestuosas aventuras, descobrimos ao lado dela que esses trilhos são tão reais quanto metafóricos. Ela se apaixona, se frustra, teme e não esconde sua personalidade. Por ser uma jovem de pouca idade e muito trauma, os silêncios se tornam rotina e a minissérie usa e abusa deles, tornando a linguagem da ausência uma das mais importantes ferramentas na hora de contar essa história.
The Underground Railroad foi o primeiro trabalho de visibilidade maior de Thuso, que tem no currículo produções televisivas de nicho. Sob a tutela de Jenkins, a atriz sul-africana cria metamorfoses em tela, eclodindo de uma cápsula protetora para a seguinte e, no caminho, protege aqueles a seu redor, em especial as duas jovens escravas com quem encontra na trama. Mbedu engrandece a minissérie, dá-lhe vida, potência e magnetismo. Sua performance evoca dor e perdão, ao mesmo tempo em que lida com a culpa e com a saudade da mãe Mabel (Sheila Atim).
Sheila rouba a cena mesmo figurando em poucos vislumbres da produção. Seu holofote é aceso quase no fim do túnel, em Chapter 10: Mabel, que rebobina as ações de Cora e nos transporta para o período em que ela não passava de uma criança e ainda vivia na fazenda escravocrata junto da família. Sem muito espaço para expandir essa narrativa conclusiva, Barry Jenkins decide pausar o avanço de Cora para que entendamos a raiz de suas questões de desconfiança e desamparo. Mabel é tão benevolente como a filha, e paga caro por cultivar esse senso materno de empatia.
Esse é mais um dos limites traçados pelo roteiro do time comandado por Jihan Crowther: a linha tênue entre o cruel e o sensível, entre a morte e a vida, entre a poesia de partir e a amargura da incerteza. A cena que conclui cruelmente a jornada de Mabel traduz com clareza o âmago de The Underground Railroad. Sequência carinhosas divididas entre Cora e Caesar (Aaron Pierre) são pontuadas pela dor do contexto, quando Jenkins se importa o suficiente com os personagens para lhes amenizar com doses cavalares de afeto, mas se importa mais ainda com a veracidade desse excruciante conto, que se passa alguns anos antes da Guerra Civil.
O papel de Caesar é catalisador de emoções na primeira trinca de episódios, mas sua ausência é logo suprida por outros dois homens. Primeiro, somos apresentados ao caçador de escravos Ridgeway, interpretado com a tenacidade de Joel Edgerton. Acompanhado do escravo Homer (Chase W. Dillon), uma mera criança que tem suas noções deturpadas pelo racista a quem pertence, Ridgeway caça Cora ao longo de toda a temporada, não dando sossego para ninguém no caminho.
A história acontece por ele e através dele, e muito da personagem Cora é resultado desse jogo doentio. O quarto episódio, The Great Spirit, onde a narrativa se transmuta de uma mera “antologia” para o golfo magnético de permissão e aflição, é focado no jovem Ridgeway, que testa os limites humanos para que sua sede de carne seja devidamente saciada. No fim, não importa quantos chicotes estalassem ou quantos grilhões selasse, ele nunca estaria satisfeito.
A segunda figura masculina, e que agracia a parcela final da série, é o personagem de William Jackson Harper (The Good Place), Royal. Maduro e nada inconsequente, é ele quem apresenta Cora ao “paraíso”, e ao conceito de liberdade dentro desse ambiente escravocrata e permeado pelos limites de felicidade e prazer. A indecisão de Cora fala mais alto, ao passo que os episódios destinados às estações de Indiana pavimentam o suspense que explode na pragmática cena do tiroteio da igreja. Os conceitos cristãos cruzam um sobre os outros, a casa de Deus é palco de uma carnificina e, honrando as escrituras sagradas, os sonhos morrem, o sangue escorre e o Céu cai.
O resultado da falência divina é a vingança tardia. Cora enfrenta seu captor, seu bicho-papão e seu demônio pessoal. Ridgeway é engrandecido pelo trabalho de Edgerton, que brilha como outros atores brancos já o fizeram no exercício de dar vida a monstros racistas. Não é coincidência que, quando as primeiras reações à série saíram, o comum acordo era reconhecer a brutalidade do ator em cena. Nessa leva, Barry Jenkins, acompanhado de uma equipe técnica formosa, não dá tanta atenção ao barulhento, preferindo iluminar as performances mais singelas e internas de suas mulheres.
No Emmy 2021, nenhuma delas foi reconhecida. Thuso ficou de fora da disputa de Atriz, assim como seus colegas coadjuvantes. As nomeações vieram coroando os trabalhos das equipes de Mixagem e Edição de Som, além da direção de elenco e a fotografia de James Laxton. Também citada, a trilha sonora mística de Nicholas Britell, parceiro de Jenkins desde Moonlight, é o grande feitiço da produção, que honra e enobrece as composições visuais e artísticas filmadas em cada uma das impressionantes locações.
Na toada de transmitir a dor e a perda de maneira nada gratuita ou agressiva à toa, The Underground Railroad não quer que sua trama seja um espetáculo dos horrores. 2021 já nos amaldiçoou com Them, produção também do Amazon Prime Video, que vê graça no sofrimento de pessoas negras. Comandado pela mente digna de um homem destinado (e já desfrutando) da grandeza e das honras, Os Caminhos para a Liberdade são imersivos, árduos, recompensadores e memoráveis. A receita perfeita para a construção de um clássico.