Vitória Lopes Gomez
Nota mental: nunca tentar definir o gênero cinematográfico e nem descrever o roteiro de The Rocky Horror Picture Show. O longa musical dirigido por Jim Sharman e baseado na peça teatral homônima levou às telas a essência satírica e tumultuada de comédia, terror e ficção científica todos juntos e misturados, com muita música, irreverência e atrevimento. Assim como os filmes B que se propôs a homenagear, a rebelde produção foi criticada, deixada de lado e jogada para as exibições com menor audiência. Entre o público das sessões, o propositalmente ridículo e contracultural The Rocky Horror Picture Show foi compreendido e, justamente por causa dos renegados, se tornou o clássico cult definitivo e atemporal que é hoje.
Na trama do filme, Brad (Barry Bostwick) e Janet (Susan Sarandon) são um jovem casal apaixonado e recatado que decide pegar a estrada para contar as boas novas a um amigo em comum: eles noivaram! Isso até que uma tempestade e um pneu furado atrapalham a viagem e os deixam presos no meio do nada. Obrigados a pedirem ajuda no único lugar possível, um castelo macabro, o casal só queria fazer uma ligação e voltar para o carro, mas toca a campainha em uma noite especial. Os dois são conduzidos ao salão principal pelo misterioso e antipático mordomo Riff Raff (Richard O’Brien) e quando veem, já estão envolvidos no excêntrico evento marcado para acontecer naquela data.
Se a abertura, o número musical e os convidados extravagantes já não derrubaram a ficha de que The Rocky Horror Picture Show é algo além do convencional, chega o anfitrião da festa, o Dr. Frank-N-Furter. Entrada triunfal é pouco: de meia arrastão e batom vermelho, ele desce por um elevador engatando em uma envolvente e divertida performance, se apresenta como um Doce Travesti da Transsexual Transilvânia e convida o casal para o laboratório, onde revelará seu mais novo experimento: um homem feito por ele para satisfazer seus desejos. Logo de cara, o protagonista de Tim Curry já é estonteante – Janet e Brad que o digam.
Daí para frente, com o Frankenstein musculoso e de sunguinha do Doutor Furter ganhando vida, um ex-amante retornando e o casal tendo que passar a noite no castelo, é impossível prever os rumos que a premissa toma e a cada curva o caminho fica mais estranho – e mais divertido. The Rocky Horror está ciente de sua bizarrice e não liga. Ao contrário, a produção aproveita o rótulo trash para ser mais escrachada ainda: os números musicais extravagantes, os figurinos coloridos e ultrajados e as performances excessivas criam a atmosfera debochada, cômica e despreocupada que fez da produção um verdadeiro espetáculo.
Literalmente um espetáculo. Depois de passar pelos palcos de Londres e Los Angeles, a peça escrita e composta por Richard O’Brien ganhou uma adaptação cinematográfica, o The Rocky Horror Picture Show como o conhecemos. Nas telas, a produção inicialmente não decolou, mas foram justamente nas sessões da meia noite que o que era um ousado e estranho longa se transformou em um fenômeno: é impossível não querer cantar e dançar com a animada trilha sonora e os espectadores começaram a performar junto dos números.
Nas madrugadas, as exibições viraram ponto de encontro de fãs, que compareciam fantasiados como os personagens e se levantavam para encenar assim que os créditos iniciais passavam. O impacto da produção superou as telas e fez de The Rocky Horror Picture Show um fenômeno cultural. Não por menos, o filme é até hoje o de maior rodagem em salas de cinemas, cravou imagens e referências no imaginário popular e vira e mexe ganha homenagens em séries, filmes e até um remake, com a participação do genial intérprete de Frank como o criminologista narrador da história.
E falando de The Rocky Horror, Tim Curry merece um destaque inteiro só para ele. Seus companheiros de elenco são divertidos e fundamentais à trama – no final, então… – mas é o cientista maluco que rouba todos os holofotes. O Frank-N-Furter de Curry é inigualável e sua presença em cena, hipnótica. O ator cria uma atmosfera misteriosa, instigante e sedutora a partir do exótico de seu personagem, e ascende como a força central do filme. Isso para não começar nos vocais: a voz potente e extasiante do artista é uma atração à parte a cada número musical (e são muitos) e tornam o protagonista ainda mais arrebatador.
Para além das músicas grudentas, do visual estimulante e das fantasias de Halloween que não envelhecem, o apelo de The Rocky Horror não é difícil de entender. Mais do que puro e simples entretenimento, o longa de Jim Sharman foi acolhedor ao reconhecer as diferenças e as abraçar. Orgulhosa de sua própria bizarrice, a produção assume sua despretensão e extravagância e a usa para ser, também, transgressora.
Em 1975, nem uma década depois da censura dos bons costumes do Cinema ter sido abolida, o filme não poupou na sensualidade. Na pele dos novatos Susan Sarandon e Barry Bostwick, a inocente Janet e o quadradão Brad estavam se guardando para depois do casamento, até que ambos foram seduzidos e (de bom grado) deixaram ser corrompidos pelo inebriante Frank. Se o casal era casto até conhecê-lo, o anfitrião já deixava claro suas intenções e desejos, sem firulas no assunto. Até o recém-nascido Rocky, criado unicamente para satisfazer seu criador, já vem ao mundo de sunga apertada e, por mais ingênuo que seja, cheio de tesão por Janet.
Como já pregava o lema “Entregue-se ao prazer absoluto”, em The Rocky Horror Picture Show não existe espaço para falso moralismo ou conservadorismo tolo. Com sua aura erótica e provocativa, o filme tirou sarro dos bons costumes da época, mas também jogou o holofote em temas como liberdade sexual e sexualidade. Nesta última, apesar dos anos 70 terem sido uma época próspera para essas discussões, o tabu estava longe de ser quebrado e Tim Curry em um corset, cantando abertamente sobre seus desejos carnais e levando Brad e Janet para a cama foi revolucionário.
Tempo presente, décadas depois da estreia. O debate sobre gênero e sexualidade avançou e até as pautas mudaram, mas a relevância da produção sobreviveu ao tempo, assim como suas sátiras ao conservadorismo. No contexto do lançamento, TRHPS foi subversivo e quebrou com os padrões da época. Em qualquer outro, como o agora, a mensagem de rebeldia e de desobediência do comum permanece atemporal, mais um dos motivos para olharmos para a produção com ainda mais carinho.
Ao final, se os cem minutos anteriores já não foram fascinantes e tresloucados o suficiente, a conclusão do filme aceita o desafio de tornar tudo ainda mais maluco e nada prepara para o grande desfecho. Comédia, terror, ficção científica, musical, tudo se bagunça, se mistura e se caçoa. Afinal, no caleidoscópio de cores, sons, reviravoltas, sentidos e experiências, The Rocky Horror já havia mostrado que não cabe em nenhuma caixinha pré-definida e que é só si próprio – e daí seu sucesso e seu merecido status definitivo. Como os personagens cantam em coro, The Rocky Horror Picture Show não sonha em ser, é.