Bruno Andrade
É inevitável: os programas televisivos sempre se saíram bem em capitalizar a vulnerabilidade do telespectador solitário. As tendências são facilmente adaptadas aos quadros das emissoras, e não poderia ser diferente no momento em que todos estão reclusos – ou deveriam estar. Indicado ao Emmy 2021 na categoria de Melhor Programa de Animação, South Park: The Pandemic Special faz história como o primeiro episódio especial da série.
Lançado pelo Comedy Central em setembro de 2020, período em que os Estados Unidos passavam de 7 milhões de casos de covid-19, o episódio autônomo de 48 minutos, transmitido simultaneamente pela primeira vez na MTV, satiriza aspectos da pandemia no país, violência policial e a vulnerabilidade das crianças diante do isolamento social. O presidente Herbert Garrison, que desde a 20ª temporada sofreu alterações no visual para ficar parecido com Donald Trump, não está interessado em dar um fim na pandemia, pois seu objetivo é eliminar os imigrantes, conforme sua promessa de campanha.
O episódio foca em Randy Marsh, que segue firme na venda de maconha desde a 23ª temporada, na qual ele abandonou a geologia para começar seu próprio negócio. As vendas vão bem, o que gera revolta em seus vizinhos, falidos pela pandemia. Ele então decide lançar a promoção Pandemic Special, vendendo sua maconha com desconto, a fim de fazer dinheiro em cima dos mortos, segundo sua esposa, Sharon Marsh. Amarrando cenas da temporada anterior, onde Randy Marsh viaja para a China, The Pandemic Special liga o personagem com a suposta origem do coronavírus.
A grande força de South Park sempre foi seu senso de liberdade e insolência, que alçou a animação à categoria dos desenhos-para-adultos. Mas, diferente daquilo que a série foi consagrada por fazer tão bem, o episódio não consegue arrancar risadas com o plot principal. Talvez porque não haja muita graça no que está acontecendo, mesmo que o tema seja tratado por uma das séries mais irreverentes dos últimos anos. A irreverência, de uma certa maneira, funciona porque aponta para coisas que acontecem com os outros. Diante de uma pandemia mundial, é inevitável fazer parte do todo. Não existem outros, mas sim todos nós – e é difícil rir de si mesmo.
Em South Park, dissonância, alienação e egoísmo prosperam, e costumam ser temas recorrentes nos episódios. Em um especial sobre a pandemia, a tarefa de satirizar o cotidiano é mais difícil, pois essas características dominaram cenários políticos e a vida cotidiana, nos fazendo lembrar de responsabilidades civis facilmente esquecidas. Aumentar o volume dessas situações, focalizando ou diminuindo determinados temas, não seria o bastante. A bem da verdade, a pandemia ainda está acontecendo, e, junto aos indivíduos saturados, estão também os indivíduos impacientes – é a receita perfeita para a discórdia, e The Pandemic Special aborda isso muito bem.
Para contornar essa situação, os criadores Trey Parker e Matt Stone tentam evocar o humor através dos indivíduos que insistem em negar a realidade, e apontam certos desvios de caráter nos próprios personagens. As risadas surgem nas pequenas histórias paralelas, que ligam a violência policial com a educação infantil em meio a pandemia, e também nas críticas àqueles que usam máscaras no queixo. Em alguns momentos, parece um amontoado de temas atuais, que foram jogados no roteiro. É um belo mashup de tópicos recorrentes em 2020, levando a pandemia como pano de fundo, mas infelizmente deixa a desejar em coerência. O episódio é totalmente autoconsciente, e os personagens questionam frequentemente se um especial de pandemia é relevante.
Apesar de uma sequência de tolices transgressoras – principalmente de Randy –, The Pandemic Special passa por caminhos obscuramente verdadeiros, e joga luz sobre o desgaste que o confinamento causou. Próximo ao fim, o episódio retrata a situação de calamidade que se instaurou no início da pandemia, e curiosamente caminha para um desenrolar melancólico, no qual Stan revela querer apenas sua vida de volta. Talvez o mais surpreendente desse episódio seja, mesmo que por pequenos instantes, se dar conta que está assistindo South Park sem o forte e típico teor irônico. Os personagens estão sofrendo, e principalmente as crianças não tentam esconder isso.
As obras que pretendem abordar a pandemia não podem – ou conseguem – abafar essa situação. Aparentemente, o coronavírus não fez somente a TV se reinventar, mas também criou um novo tipo de telespectador, que em meio às difíceis notícias diárias espera encontrar sinceridade nos produtos que consome. Mesmo tentando lidar com humor, South Park: The Pandemic Special soa terrivelmente impactante, e demonstra o desespero contemporâneo que transformou o pior da ficção em realidade.