Raquel Dutra
A metamorfose de Filho das Monarcas é sugerida desde sua primeira cena. Quando um pesquisador curioso rompe cuidadosamente o casulo de uma borboleta logo antes de uma voz ancestral explicar um dos muitos significados atribuídos àquele processo, Alexis Gambis sussurra ao público da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo que sua história existirá em algum lugar entre as ideias de modernidade e tradição, ciência e arte, natureza e tecnologia, relações e separações, mudanças e raízes.
O gancho de Filho das Monarcas – e apenas ele – é simples: a obra relaciona os significados do processo migratório de uma espécie de borboleta repleta de sentidos para a cultura latino-americana com as experiências e ciclos da existência humana. O vetor dessa transmutação narrativa é Mendel (Tenoch Huerta Mejía), um biólogo mexicano vivendo em Nova York que precisa retornar à sua cidade natal, situada nas florestas de borboletas de Michoacán. O motivo é dizer adeus à sua avó, que foi responsável pela criação dele e de seu irmão Simón (Noé Hernández) depois da morte de seus pais em uma enchente de uma mina na região, e a consequência é enfrentar traumas do passado e lidar com o desencadear de uma profunda reflexão sobre sua identidade.
Como alertado, a história de Filho das Monarcas (Hijo de Monarcas, no original) traça um rumo ao contrário do que é esperado em obras do gênero. Antes de contextualizar a vida de Mendel como pesquisador e imigrante na metrópole estadunidense, para desenvolver gradativamente o nosso conhecimento sobre o personagem a partir de um ponto de partida, o filme nos coloca primeiro diante no momento delicado que ele vive em seu núcleo familiar, gerando um incômodo narrativo que harmoniza perfeitamente com o efeito que o filme mantém até o final.
A escolha de Filho das Monarcas em mostrar primeiro os traumas do protagonista para depois apresentar a forma como ele segue a vida apesar deles é o que fortalece seu impacto. Seja na interpretação fascinante que Mejía faz do complexo Mendel (vista nos momentos de conflitos da relação com o irmão e nas interações dele com os demais familiares e amigos) ou na riqueza metafórica do roteiro de Gambis (que atinge seu ápice quando ele faz o personagem tatuar borboletas nos braços usando a própria tinta de uma delas), a dimensão psicológica do protagonista não é nada sutil ao público, mas parecem ser despercebida pelos personagens do filme.
Assim, Filho das Monarcas é (des)orientado por paradoxos. Indo de uma aproximação com uma estética documental até flertes com o realismo mágico, a produção detém uma linguagem experimental e muitos cantos poéticos de reflexões sociais, filosóficas, culturais, artísticas e científicas. O encanto das imagens sobrevoa o peso do roteiro, que tenta se encaixar na leveza de seu elenco. E se a fotografia de Alejandro Mejía perde o fôlego nas paisagens naturais, não demora a recuperá-lo na observação controlada das borboletas em microscópios, enquanto a trilha de Cristóbal MarYán persegue um som que liga melodias eletrônicas e tecnológicas à harmonias acústicas e clássicas.
A fascinação do cineasta venezuelano pelos contrastes aparece também de forma mais direta no filme. O fio narrativo não é linear nem no tempo presente, e à sua construção temporal, Filho das Monarcas ainda mistura flashbacks repentinos. Neles, a obra ilumina a infância de Mendel com uma criança doce e curiosa, que incomoda seu irmão mais velho com algumas questões mais difíceis da vida.
Então, de repente, saímos da frieza nova-iorquina para tomar parte de mais um rito de luto da família de Mendel, onde ele ainda encontra tempo para trazer o tema da imigração que é indissociável da história em críticas ao governo de Donald Trump. Não contente em compreender um mundo em 97 minutos, o filme também adota num ritmo lento, apostando alto em sua experiência.
Mas pelos ciclos de Filho das Monarcas, vale a pena esperar. É fato que o filme tem dificuldade em coordenar tantos elementos temáticos, narrativos e técnicos, mas – sem desfazer a graça de identificar as metáforas da obra – não existe outro processo a ser adotado diante de uma história repleta de poder figurativo além de abraçar tudo num casulo e observar a sua evolução.