Vitor Evangelista
Com um título desse, é esperado que Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental tenha prazer em chocar, mas ninguém está preparado para o que vem logo que as luzes se apagam. Uma fita de sexo abre a produção romena, que se centra na ruína de uma professora de Ensino Fundamental, a estrela do vídeo adulto, sofrendo as consequências quando a gravação cai na internet e a escola em que trabalha a encontra.
E não havia filme mais propício para abrir os trabalhos da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, que em 2021 adota um formato híbrido após sobreviver a um 2020 completamente virtual. Na coletiva de imprensa de abertura, realizada de maneira on-line em nove de outubro, a diretora do evento Renata de Almeida revelou que Pornô Acidental reflete muito como a população enxerga a pandemia e, embora seja rodado na Romênia, assistiríamos por quase duas horas ecos fortes do Brasil. Ela não mentiu.
Seja com as máscaras penduradas no queixo ou com os narizes descobertos, o diretor Radu Jude captura com exímio os tempos do coronavírus, sem qualquer necessidade de forçar a barra ou inventar situações. Como 2020 em diante provou, a realidade deixa muita ficção no chinelo. O faz de conta, porém, é usado na abertura com a cena de sexo. Sobre uma ótica cômica, mas nunca humilhante, a gravação caseira do ato dita o compasso narrativo da obra e, portanto, não poderia ficar de fora dela.
Depois de explorar o lado mais íntimo de alguém, o filme passa quase uma hora ao ar livre, acompanhando fielmente a personagem principal Emilia (Katia Pascariu), em um dia de afazeres na capital Bucareste. A lente documental preenche o foco da direção, ao passo que assistimos a professora fazer compras, olhar vitrines, visitar colegas. Tal qual um famoso diretor mexicano que capturou seu bairro de infância com os olhos gigantes de uma criança maravilhada, Rude filma a Romênia pandêmica e raivosa sem os limites de um quadro estático.
A fotografia de Marius Panduru viaja, abraçando as ruas, prédios, bicicletas, outdoors e seus residentes. O íntimo da pornografia é surpreendido e substituído pelo exterior do mundo real, complementando-o. Mas, então, o tempo passa, o dia vira noite e Má Sorte no Sexo interrompe a rotina nada banal de Emilia para, em sua segunda parte, apresentar um show de slides que tira sarro de tudo que você possa imaginar. As alegorias do passado da Romênia são cutucadas, assim como inversões de definições do dicionário e termos sexuais, para combinar com a temática debochada de escárnio do filme. “Boquete: a palavra mais procurada do dicionário, seguida por ‘empatia’”, aparece nas legendas acompanhado do vídeo de alguém performando o ato descrito.
O humor europeu incendeia a crítica ao “politicamente correto” e ao falso moralismo que povoa a sociedade como um todo. Quando o diretor encerra seus slides, indo de A a Z por quase vinte e seis minutos, voltamos à órbita da professora, que enfim chega na reunião de pais que definirá seu futuro depois do mundo todo vê-la pelada, de peruca rosa e com um chicote estalando na bunda do marido. Os responsáveis/juízes da ética, sentados no pátio do colégio por conta do distanciamento social, logo imitam os inquisidores de Salem e pedem a cabeça da mulher.
Xingada e humilhada, a professora em momento algum abaixa a cabeça e aceita os julgamentos. Astuta como é, ela vira a palavra dos conservadores contra eles próprios, dando sermões a respeito da própria História da Romênia, embasando suas falas em artigos de estudiosos que ela própria ensina aos filhos deles. Fator interessante dessa dinâmica é como o diretor e roteirista despe os preconceitos dessas figuras mais tradicionais da sociedade, como o homem do exército, a dona de casa mais afortunada e até um imigrante insatisfeito.
O texto se abraça a atributos mais técnicos, como o figurino dos personagens, em especial a escolha de estampa das máscaras que usam no encontro. O padre preconceituoso, que usa uma proteção em referência ao movimento Black Lives Matter e a fala “I Can’t Breathe” (“Eu Não Consigo Respirar”), é demasiado cômico (e Jude sabe bem disso). A revolta que nasce das falas machistas, sexistas e misóginas se transforma em graça visto o tamanho do absurdo da situação.
Com esse pepino (ou vibrador verde, você quem decide) em mãos, o filme chega a melhor conclusão possível: nenhuma. Na parte três, referida como uma sitcom, Pornô Acidental acaba sem final, ou melhor, com três deles. Mais uma vez pisando no freio, Radu Jude oferece alguns caminhos, um pessimista, um otimista e um doido para cacete. O público decide em qual acreditar, mas a imagem que congela para os créditos subirem é forte demais para deixar qualquer dúvida no ar. Que porra foi essa?