Na Semana de 1922, o maestro já demonstrava seu esforço em trazer elementos do folclore brasileiro à Música Clássica
Bruno Andrade
No dia 17 de fevereiro de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo, o público acomodou-se de forma lenta e espaçada, aguardando a apresentação de um músico carioca, tido como o mais conceituado da Semana de Arte Moderna e um dos maestros brasileiros mais promissores já à época do evento. O musicista fazia parte de três dias da programação da Semana, e, ao ser convidado para integrá-la, estava às vésperas de completar 35 anos. Para sua estreia no palco paulistano, ele selecionou o que de mais representativo havia produzido em música de câmara nos anos anteriores. Não demorou para que o compositor, vestindo casaca e calçando, em um pé, sapato, e, no outro, chinelo, surgisse no palco, seguido por vaias e urros de negação. A plateia havia interpretado o uso do chinelo como puro desrespeito; aparentemente, era apenas um machucado no dedão – mas pode bem ser que não fosse. De qualquer forma, o espetáculo pôde enfim começar: Heitor Villa-Lobos chegou.
Nascido em 5 de março de 1887, no Rio de Janeiro, Villa-Lobos teve sua consagração através de um esforço em integrar elementos nacionalistas e ritmos ligados à cultura afro-brasileira e indígena, jogando luz a uma faceta da cultura nacional que muitas vezes mantinha-se à margem dos musicistas clássicos. Em suas obras maiores, atingiu um tom ufanista, e misturou complexos padrões rítmicos da Música brasileira com multi-tonalidade, influenciado por Stravinsky e Milhaud. Assim, combinou elementos da Música popular e da tradição musical europeia, impulsionando, invariavelmente, o Brasil na rota da Música Clássica do século XX.
Falar de Villa-Lobos apresenta algumas dificuldades elementares, visto que sua vasta produção musical possui mais de mil obras, e algumas sequer foram executadas. Ao mesmo tempo, mistura-se às dificuldades encontradas em analisar a Semana de Arte Moderna, como a ausência de documentos sobre o evento e a forma destoante que foi interpretado pela sociedade. Durante a Semana, o músico se apresentou em três dias (13, 15 e 17), cujo episódio marcante – em que surgiu no palco calçando um chinelo solitário – ocorreu somente no terceiro dia de apresentações, com a sala do Theatro Municipal mais vazia que nos dias anteriores. O jeito irreverente do compositor – era chamado pejorativamente de “Vira-Loucos” – põe em dúvida a existência da possível lesão no pé, mas de nenhuma forma descarta a possibilidade. Ilustra, porém, muito da personalidade de Villa-Lobos: ele foi a junção do popular e do erudito.
Seu pai, Raul Villa-Lobos, foi um bibliotecário e músico amador, que deu o pontapé inicial para introduzir o filho à Música Clássica, após perceber seu talento natural. Aos 6 anos de idade, Heitor já havia aprendido a tocar clarinete e violoncelo, sob supervisão do pai. Não muito tempo depois, quando o futuro maestro tinha apenas 12 anos, Raul faleceu, vítima de malária. Concomitante à morte paterna, a mãe de Villa-Lobos, Noêmia, instituiu regras bastante claras contra os interesses musicais do filho, e declarou que ele deveria se tornar médico. A História diz que, após Villa-Lobos ser proibido de tocar violão – outra de suas paixões –, passou a fugir pela noite para frequentar as rodas de choro (nesse caso, além da proibição imposta na casa, havia também o preconceito, visto que a Música popular ainda tinha a pecha de ser dominada pelas classes mais baixas), e aprimorou-se silenciosamente no instrumento, o qual mantinha escondido embaixo da cama.
Das milhares de composições de Heitor Villa-Lobos, destacam-se as 11 sinfonias, três óperas e 18 peças para quarteto de cordas, criadas sob influência do choro – ou chorinho –, gênero de Música popular e instrumental, com origem carioca em meados do século XIX, cuja personalidade de maior renome foi Pixinguinha (1897-1973). Ele também compôs nove obras intituladas Bachianas Brasileiras, entre 1930 e 1945, que combinam as influências da Música brasileira e do neo-barroco, especialmente de Johann Sebastian Bach, como seu título sugere. Nessas suítes, Villa-Lobos fundiu de forma intensa material folclórico brasileiro – em especial a música caipira – à elementos clássicos, transformando esse trabalho em uma de suas principais obras. O Trenzinho Caipira, parte final das Bachianas No. 2, é um de seus trabalhos mais populares.
Depois de sua apresentação na Semana de Arte Moderna – e uma estadia em Paris, de 1923 a 1925 –, sua música sofreu mudanças significativas. Na França, Villa-Lobos encontra uma vanguarda musical que contesta as ideias de Claude Debussy – Darius Milhaud faz parte desse grupo –, cujo interesse cultural estava lentamente transicionando para o surrealismo e o extravagante, o que influenciou o músico a apostar em formatos distantes do conservadorismo que dominava as composições clássicas. Um instrumento que ganhou destaque em muitas realizações do músico pós-Semana foi o saxofone. Ele próprio tocava clarinete e eventualmente tocava o sax. Um de seus amigos de infância, Anacleto de Medeiros, foi um exímio saxofonista, colaborando em muitos dos trabalhos de Villa-Lobos, os quais resultaram em uma quantidade considerável de música de câmara para o instrumento, além de obras orquestrais, como a Sinfonia No. 4, a qual pede um quarteto de saxofones.
No entanto, embora fosse importante para Villa-Lobos, Fantasia para saxofone soprano e pequena orquestra é seu único trabalho solo para o instrumento. A obra foi composta em 1948, e dedicada ao saxofonista francês Marcel Mule, o qual Villa-Lobos conheceu ainda em Paris. A composição foi iniciada em Nova York mas concluída somente no Rio de Janeiro, ao final daquele ano. Mule nunca chegou a tocar Fantasia, alegando dificuldades devido a tonalidade exigir notas fora da tessitura do saxofone. Foi, portanto, Waldemar Szpilman, um saxofonista polonês que se mudou para o Brasil em 1925, que estreou a obra como solista, no Rio de Janeiro, em 1951. Um fato curioso é que Waldemar era primo de Władysław Szpilman, o pianista que de forma milagrosa sobreviveu em Varsóvia durante a Segunda Guerra Mundial, como relatado nas memórias que originaram O Pianista (2002), filme que rendeu o Oscar de Melhor Ator para Adrien Brody. Mas o mais interessante é que, paradoxalmente, após a viagem à França, Villa-Lobos entende que precisa deixar de lado as influências francesas, vistas com muito esmero pela aristocracia brasileira à época – as Bachianas surgem daí, num esforço em apontar Bach no cenário folclórico brasileiro.
Outro personagem musical relevante na Semana de Arte Moderna – naturalmente ofuscado por seu trabalho de poeta e romancista –, foi Mário de Andrade (1893-1945). Além de escritor, Andrade foi musicólogo, crítico musical e um relevante compositor, atuando como professor de Música no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (CDMSP). Alguns de seus poemas, em especial os da coletânea Paulicéia Desvairada (1922), desenvolvem-se com a utilização livre das métricas, e, por conseguinte, traçam certos ideais musicais, visto que se desprendem da estrutura formal a qual vinha sendo produzida a poesia brasileira.
Alinhado com Villa-Lobos, o escritor defendia que a pesquisa do folclore brasileiro deveria ser a principal fonte temática e técnica dos músicos eruditos – pelo menos daqueles que se propunham a criar uma música verdadeiramente brasileira. Dessa forma, ambos os autores ganharam notoriedade como os principais integrantes da Semana que vislumbraram um novo projeto de cultura nacional através da Música.
O folclore, na concepção mais ou menos uniforme desses autores, manifesta-se como o conjunto de relações que se originam de provérbios, histórias, danças e junção das religiões, além de elementos da música de rua. Não seria absurdo afirmar que, no fundo, a ideia defendida por Villa-Lobos e Mário de Andrade era a de que a cultura popular deveria ser o principal motor de identificação artística dos brasileiros, deixando em segundo plano as referências internacionais. Estendendo ao todo, essa também foi uma reivindicação dos demais modernistas.
Villa-Lobos demorou a ser consenso, e uma parcela da crítica interpretou as referências folclóricas de suas obras como apropriações; à época, esses críticos não estavam preocupados com as questões identitárias imprescindíveis a acusação, mas tinham o intuito de apontar uma falta de originalidade do compositor. Para Leopoldo Waizbort, professor do Departamento de Sociologia da USP, Heitor Villa-Lobos não incorporou apenas elementos indígenas em suas composições, mas também os defeitos de gravação registrados nos fonogramas. Dessa forma, não seria a música indígena que estaria sendo reproduzida, mas havia, sim, algo criado a partir dela. Aí encontra-se a originalidade: a partir de elementos folclóricos, obras totalmente novas foram concebidas.
No documentário Villa-Lobos: O Índio de Casaca (1987), dirigido por Roberto Feith e produzido pela Rede Manchete, Tom Jobim aparece reverenciando Villa-Lobos e demonstrando seu débito com o maestro. Nos trechos, Jobim relata os encontros que manteve com o compositor em sua residência, nos quais observava suas produções caóticas, sempre cercado por barulhos diversos – dos sons altos que saiam da TV aos músicos que ensaiavam na sala da casa. Não é difícil entender que, para Villa-Lobos, os ruídos internos e externos seguiam por caminhos diferentes, e, talvez, fossem unificados somente no resultado final de suas obras. Em seus últimos anos, Heitor Villa-Lobos consolidou-se como uma figura de importância na divulgação da Música, e seu projeto orfeônico de educação musical, iniciado ainda nos 1930, não terminou com sua morte.
As partituras de Villa-Lobos revelam que, além da preocupação com uma identidade nacional, mantinha-se uma inquietação quanto aos procedimentos que se tornavam acadêmicos, destituídos de significação para a música cotidiana. Um dos legados do maestro foi introduzir, na Música Clássica brasileira, uma ruptura, na qual foram promovidas ideias revolucionárias que, à época, soaram absurdas. Esse rompimento foi totalmente absorvido pelos movimentos contraculturais no Brasil, em especial o Tropicalismo. Seus ideais foram tão difundidos que é difícil não enxergar Villa-Lobos em toda a Música brasileira – ele está na MPB, na Bossa Nova, e até nos atos de revolta de bandas de rock nacionais (considerando, também, que o musicista possui uma extensa composição para instrumentos de corda, inclusive o violão). No entanto, a maneira mais fácil de prestar homenagem a Villa-Lobos é imaginar o quanto o Brasil teria sido mais pobre sem ele.
Em uma viagem à Europa, ao ser questionado sobre as influências folclóricas em suas obras, Villa-Lobos respondeu, impaciente: “Eu não uso o folclore, eu sou o folclore.” Essa afirmação aponta dois caminhos possíveis de interpretação: 1) como compositor brasileiro motivado pela criação de uma identidade cultural, sua própria história se entrelaça com a do folclore nacional, e suas obras podem ser vistas como continuações da cultura popular; 2) Villa-Lobos foi tão grande e inigualável a ponto de fazer, ele próprio, parte dos mitos que circundam o folclore brasileiro. Levando em conta o senso de humor característico do maestro e os motivos pelos quais refletimos sobre o seu legado 100 anos depois de sua apresentação na Semana de Arte Moderna, é bem provável que fosse a segunda opção.